quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quer que eu desenhe?




No banheiro de um posto no caminho entre Newcastle e Johannesburgo, até mesmo simples placas com instruções têm explicações em três diferentes idiomas, além dos desenhos. Na África do Sul, o entendimento entre as pessoas muitas vezes está condicionado à diversidade de línguas.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Flashes de um braai afrikans

Para os meus vizinhos afrikaners aqui de Newcastle, um dos programas tradicionais de sábado ou domingo é o braai, o churrasco que geralmente vem acompanhado da linguiça, também tradicional, daqui, a boerewors. Isso mesmo: o nome vem dos boêres, os tradicionais fazendeiros descendentes de holandeses.

Em um dos fins de semana de sol na cidade, fomos convidados para um desses braais feito pela vizinha de casa. Sentados na varanda, tomando uma Castle (uma das cervejas locais) e comendo a boerewors temperada na maneira deles (passa-se no limão e em um temperinho de ervas), tudo como manda o figurino, conheci um outro casal de vizinhos, que estava acompanhado de sua neta mais nova.

Conversando com a vizinha, ela me contou que a netinha tinha entrado na escola do bairro, a Huttenpark Primary School, esse ano. Toda orgulhosa, disse que a menina falava bem o inglês e o afrikans, idiomas que estava aprendendo na escola. E acrescentou, indignada: "E ela está sendo obrigada a aprender também zulu". Tentei argumentar que aprender o idioma poderia ser importante para ela se comunicar bem com outras pessoas do país. Recebi a típica resposta racista disfarçada: "Não é que eu não goste dela aprender a língua 'deles', mas é que isso vai confundir a cabeça da menina, com esse tanto de idiomas".

Continuamos a conversa, em que eu mais ouvia do que falava, e ela, mais uma vez orgulhosa, contando sobre as belezas do país, disse que os filhos tinham vontade de mudar da África do Sul e passear em outros lugares. Ela, entretanto, preferia ficar aqui, mesmo que fosse "perigoso". "Não me importo se, para cada um de 'nós' (afrikaners e brancos), existem doze 'deles'. Esse é o meu país e as minhas raízes estão aqui". Dessa vez, achei melhor nem argumentar que é, também, o país 'deles', embora por muito tempo não tenha sido.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A mídia e a questão racial - Parte 2

A rede televisiva nacional SABC


Como já demonstrado pelo exemplo do Newcastle Advertiser, no âmbito local a questão dos idiomas é um problema para as publicações midiáticas na África do Sul. Quando se expande o problema para a mídia nacional, as coisas se complicam ainda mais. É por isso que a South Africa Broadcaster Corporation (SABC), a rede pública nacional de televisão e rádio do país, adotou uma estratégia de integração da diversidade cultural. Segundo o site da própria emissora, a SABC "é um organismo de radiodifusão pública estabelecida em 1936 com a fusão de três emissoras de rádio, formadas no início dos anos 1920. O principal negócio da SABC é oferecer uma variedade de programas e serviços de qualidade através da televisão e do rádio (...) para o público em geral." O público em geral, nesse caso, envolve o dilema das várias línguas e culturas nacionais.


Acima a primeira transmissão televisiva oficial na África do Sul

A emissora, que surgiu numa época de ebulição dos ódios inter raciais e que sobreviveu aos anos do apartheid, mudou muito sua programação. Os principais objetivos proclamados no site da SABC, atualmente, são um espelho da preocupação em não repetir erros do passado, quando o regime do apartheid promovia não só o racismo, mas apenas uma versão das histórias do país e limitava a participação política das pessoas. Tudo isso era largamente sustentado pela mídia. Assim, a emissora define como seus principais objetivos: "Promover a democracia, o não-racismo, a construção da nação, e a capacitação (...) em todas as línguas oficiais". Além disso, também quer assegurar que os conteúdos da SABC contem "a história Sul Africana e Africana com precisão, imparcialidade e de forma equilibrada para todos os sul-africanos".

Os idiomas na TV aberta

Para cumprir seu papel, a rede possui três canais abertos de TV, sendo cada um voltado para a programação em línguas específicas. O canal SABC 1 contempla o inglês, o isiZulu, o isiXhosa, o Sindebele e o Siswati; já o SABC2 tem transmissões nos idiomas inglês, Afrikans, Sesotho, Setswana, Sepedi, Xitsonga e Tshivenda. O SABC3, de programação mais comercial, transmite apenas em inglês, a língua oficial do mundo empresarial sul africano.

Grande parte da programação da SABC é em inglês e os programas em outras línguas contam com legendas. No caso dos jornais diários, entretanto, a emissora optou por fazer cinco versões, sendo duas em um canal e outras três em outro, cada uma contemplando uma ou mais línguas e nenhuma delas contendo legendas. Assim, diariamente o SABC1 transmite uma edição do jornal em SiSwati e Ndebele, e uma outra edição em isiZulu e em isiXhosa. O SABC2 transmite uma edição em TshiVenda e XiTsonga, outra em Afrikans e uma última em Sesotho, Sepedi e Setswana. Já o SABC3 transmite diversos boletins durante o dia, todos em inglês. A maioria das notícias contidas em cada versão dos jornais é praticamente igual, e as fontes entrevistadas para as matérias em comum falam inglês.

Imagem de uma das edições do jornal da SABC1
Foto tirada desse link




Video de uma edição do jornal em afrikans no SABC2 




Uma das edições do jornal em inglês no SABC3


Além da aparência física do apresentador - ou seja, a cor da pele, entre outras características -, a única outra parte que me pareceu bem diferente nos jornais em Afrikans numa comparação com os de outras línguas, foi a de esportes. No dia em que acompanhei toda a programação de jornais dos dois canais - SABC 1 e 2 -, por exemplo, todos os noticiários nas línguas "negras" continham notícias sobre os Bafana Bafana (a seleção nacional de futebol), que ia jogar no dia seguinte contra a seleção de Angola. Já no jornal em afrikans, nada foi dito sobre o jogo e as notícias mostravam os Springboks (seleção nacional de rugby) e os times locais, que estão disputando o campeonato nacional da ABSA Currie Cup, além de resultados de jogos de críquete. Provavelmente as notícias seguem os interesses dos telespectadores de cada idioma, o que, entretanto, não deixa de demonstrar as divisões de um país ainda fragmentado.

Identidade nacional

Uma das principais políticas da SABC, que além da rede de televisões mantém 20 canais de rádio no país, é contribuir para o fortalecimento da identidade nacional no país. Ao ler uma dissertação de mestrado publicada por uma estudante da Faculdade de Humanidades da Universidade de Johannesburgo, tive oportunidade de saber como as pessoas da própria SABC enxergavam o papel da emissora na construção desta identidade. Para um país por muito tempo segregado, sendo que cada grupo racial tinha uma percepção de si mesmo - e não se entendiam como sul africanos, mas como afrikans, zulus ou xhosas- , a construção de uma identidade comum revela-se um desafio.

De acordo com a pesquisa realizada pela estudante todos os empregados da SABC entrevistados concordavam que era importante contribuir para a propagação da identidade nacional, embora a maioria não soubesse dizer o que seria essa identidade ou quais seus traços principais. Além disso, foi constatado que, para muitos, o uso de diversas línguas, bem como a política da rede de exibir uma certa porcentagem de programas locais produzidos no país, era uma faca de dois gumes. Segundo a autora da tese, Kurai Masenyama, muitos dos entrevistados para o trabalho diziam que mostrar as várias culturas locais contribuiria para que todos os sul africanos entendessem que aquela diversidade era constituinte de uma única cultura nacional, da qual todos faziam parte. Esses entrevistados enxergavam a exibição da variedade como uma oportunidade para as pessoas conhecerem e se sentirem integrantes de outros aspectos da vida no país.

Por outro lado, algumas pessoas diziam que mostrar as diferenças apenas contribuiria para reforçar que elas existem. Antes de se sentir parte daquelas culturas que lhes eram estranhas, as pessoas provavelmente as iriam rejeitar e fariam questão de se diferenciar delas, demarcando sua identidade grupal. Além disso, muitos acreditavam que a definição de uma única língua, o inglês, como idioma oficial contribuiria grandemente para a formação de uma identidade nacional.

A eterna dúvida entre unir através da língua ou respeitar e difundir a diversidade como a marca da identidade nacional parece ser uma preocupação que constantemente ronda a mídia. No caso da SABC, entretanto, outra questão parece ser ainda mais importante. Muitos dos grupos do país foram privados por muito tempo do acesso à tecnologia e à mídia e, até 2004, cerca de 85% do território sul africano ainda não tinha sinal de televisão¹. Desse jeito, como atingir todas as pessoas e conseguir falar em identidade nacional com tão baixo alcance? Esse número é mais uma das heranças da desigualdade promovida pelo apartheid, que ainda contribui para a existência de duas - ou tantas outras - Áfricas do Sul, com padrões de vida ainda muito diferentes.



¹ Dado retirado do livro DOMINGO, Vernon. Modern World Nations: South Africa. EUA: 2004, by Chelsea House Publishers, a subsidiary of Haights Cross Communications.

sábado, 18 de setembro de 2010

A mídia e a questão racial - Parte 1

A experiência do Newcastle Advertiser, jornal impresso local


Capa do Newcastle Advertiser do dia 17 de setembro
"A única regra simples que nós temos é não mencionar a raça de uma pessoa em uma notícia, a menos que seja necessário. Por exemplo, não podemos dizer: um negro foi preso por estuprar uma mulher branca em sua casa na tarde de sexta feira passada. Alguns anos atrás isso era aceitável", explicou-me Tanya dos Santos, a editora do Newcastle Advertiser, o jornal impresso de maior circulação na cidade. Além disso, o jornal tem apenas outra política acerca da questão racial, que descobri rodando com os jornalistas da publicação. Fomos para as ruas fazer um povo-fala (cuja definição você encontra aqui) e Bruce Douglas, um dos jornalistas, disse que o Advertiser exigia que, das cinco pessoas entrevistadas - cujas opiniões e fotos seriam publicadas na seção -, duas fossem brancas, duas negras e uma indiana - ou duas indianas e uma negra.

De acordo com Tanya, a exigência não é uma recomendação do governo ou algo assim. É apenas uma maneira de evitar problemas e reclamações para o jornal. "Nós somos chamados de racistas se colocamos muitas pessoas brancas no jornal. Nós somos chamados de racistas se cobrimos uma história na qual pessoas brancas são afetadas", explicou a editora do Advertiser. Segundo ela, o apartheid continua sendo uma questão sensível para muitos. "Enquanto os brancos acham que os negros continuam usando o 'cartão do apartheid', reclamando que tudo que acontece com eles é racismo, os negros acham que eles ainda estão sob o regime do apartheid. O regime acabou há muitos muitos anos, e algumas pessoas precisam tomar conhecimento disso e seguir em frente", desabafou ela.


Povo fala no Newcastle Advertiser do dia 3 de setembro de 2010:
pessoas escolhidas de acordo com a raça
Essas simples questões demonstram como ainda é frágil a convivência entre negros e brancos em um país que há 16 anos acabou formalmente com a segregação racial. A mídia sul africana, que durante os anos de apartheid proclamava apenas uma das versões - a branca, que justificava o regime dizendo que isso era feito para preservar a identidade dos descendentes de europeus em um país de maioria negra -, hoje é teoricamente livre. Nada de episódios como o do jornalista Donald Woods, que teve que sair escondido do país para publicar a verdadeira versão sobre o julgamento e morte do ativista negro Steve Biko. Ainda assim, a questão é delicada e são necessários alguns cuidados para se ter uma mídia "equilibrada".

Imparcialidade ou omissão?

Em qualquer universidade de jornalismo, uma das primeiras regras que se aprende é a importância da imparcialidade na apuração, mais conhecida popularmente como "ouvir os dois lados de uma história". Aqui, segundo Tanya, a regra é ainda mais importante. Além disso, é necessário que os jornalistas tenham muito cuidado ao expressar opiniões acerca das notícias envolvendo questões raciais.

Ela cita o exemplo do presidente da juventude do partido ANC, Julius Malema, que costuma expressar opiniões racistas e cantar hinos como "Shoot the Boers" ("Morte aos boers"). "Isso foi considerado como incitação ao ódio e Malema foi rapidamente colocado em seu lugar. O jornal tem o dever de reportar e a comunidade tem o direito de saber se ataques de ordem racial, como esse, estão acontecendo. Então nós fazemos notícias sobre isso, quando acontece, mas vamos sempre citar a fonte e não usar qualquer opinião pessoal. Nós não queremos que nenhuma raça se sinta prejudicada caso adotemos um dos lados".


Capas de várias publicações da mesma rede do Newcastle Advertiser

Muitas línguas, apenas uma notícia?

Outra questão delicada com a qual a mídia nacional tem que lidar é a diversidade de línguas. No caso do Newcastle Advertiser, a jornalista Estella Naicker me contou que eles suprem as diferentes necessidades de notícias mantendo uma rede diversificada de publicações. Essa rede inclui outros jornais menores em inglês, uma revista de soft news também em inglês, uma revista em afrikans dirigida aos boers (fazendeiros) da região e um jornal em zulu, que cobre prioritariamente as notícias de Madadeni e Osizweni - outra township localizada nos arredores de Newcastle. Além disso, o próprio Advertiser contém partes em inglês e outras em afrikans. Segundo Tanya, eles tentam manter a proporção de 70% do jornal em inglês e 30% em afrikans.

Para os jornalistas do Advertiser, lidar com as línguas é um problema também na hora da apuração. De acordo com Bruce, algumas vezes eles são chamados para cobrir algum acontecimento em Madadeni e se deparam com fontes que só sabem falar zulu. "Quando temos que fazer matérias nas townships, temos que achar alguém que fale inglês, porque muitas das pessoas de lá só falam zulu e eu entendo muito pouco da língua", explicou Bruce. Segundo ele, é por isso que nas townships a rede mantém uma cobertura voltada para uma publicação exclusiva na língua, com repórteres que têm o idioma como língua principal. Segundo Bruce, o que acontece também é que a maioria das pessoas entende e sabe falar um pouco de inglês, mas preferem conversar na sua língua principal.

Quando se trata do afrikans, Estella explica que eles não têm problemas em conversar com pessoas que só falam a língua: "Quando eu estava na escola, durante o apartheid, os alunos eram obrigados a aprender afrikans. Por isso, muitas pessoas consegue entender o idioma, mesmo que não saiba falar".

Para mim ainda é uma experiência divertida entrar nos supermercados e me deparar com publicações em várias línguas, a maioria em inglês e algumas em afrikans ou zulu, mas todas pertencentes a um mesmo país. Aparentemente, pelas publicações que ando colecionando - e tentando entender -, as diferenças mais visíveis (literalmente) entre o Newcastle Advertiser e a publicação em zulu da rede , o Ilanga, são a quantidade e o conteúdo das fotos. Em uma das edições do jornal zulu, havia uma foto grande de uma mulher vestida com trajes típicos africanos, com uma saia colorida, colares de miçanga e seios de fora, algo inaceitável para os leitores afrikans. E o que fica são perguntas: será que as notícias em tantas diferentes línguas contam a mesma versão de uma mesma história? Como as pessoas percebem as notícias sobre questões raciais? Mas isso é assunto para outro post, em breve.


Foto do jornal Ilanga, publicação em zulu, do dia 18 de agosto


Parte do Advertiser escrita em afrikans


sábado, 11 de setembro de 2010

"Convivência" separada

A divisão dos espaços físicos, ainda que não formalizada como durante o apartheid, separa os frequentadores entre brancos e demais raças nos lugares de Newcastle

Na década de 1950 a África do Sul vivenciou um dos ápices do apartheid, com a assinatura do Ato de Registro da População (Population Registration Act), que classificava as pessoas de acordo com sua "raça". Assim, eles eram separados em brancos, coloureds (quando havia a mistura de duas raças), indianos e africanos (negros). Outros atos contemporâneos também determinaram a criação de homelands, que eram espécies de países separados e controlados por chefes africanos com a assistência (e supervisão)de brancos, nos quais os negros eram obrigados a viver, além das townships. Dessa forma, tudo no país passou a ser dividido. Os casamentos inter-raciais eram proibidos, foram determinados locais separados para as raças e, para entrar nas cidades e espaços reservados aos brancos, os negros, indianos e coloureds deviam portar um passe e comprovar que trabalhavam lá.

Segundo o livro que estou lendo, South Africa in Pictures, "praias, hotéis, prefeituras, ônibus, banheiros, escolas, universidades e arenas de esporte eram todos separados"¹. Muitos desses espaços tinham placas indicando quando eram somente para brancos ou negros. Uma das minha vizinhas aqui de Newcastle, que tem 53 anos e viveu (e ainda vive) na época do apartheid, contou que em determinada hora tocava-se um sinal nas cidades "brancas" e os negros tinham que deixar o local e voltar para suas townships ou homelands.
Placa em várias línguas mostrando que a praia em Durban era reservada a brancos
Foto tirada desse link
Banheiro reservado para negros, asiáticos e coloureds
Foto tirada desse link

Banheiros públicos reservados para brancos
Foto tirada desse link.



Atualmente, 60 anos após o Ato ter sido criado e 16 depois de ter sido banido pela Constituição assinada por Nelson Mandela quando se tornou presidente, as placas e as divisões formais não existem mais. No entanto, a impressão é de que elas ainda continuam lá, pois a separação dos espaços físicos ainda é muito nítida.

Em muitos dos lugares que frequento não há nenhum negro. Isso vale para os restaurantes e também para a "casa de shows" (uma espécie de salão aberto, com um bar, onde as pessoas vão para dançar músicas afrikaner, conversar e beber) a que fui nos últimos finais de semana. Conversando com a vizinha sobre isso, ela me disse que acredita que se algum negro um dia entrar em um desses lugares, provavelmente muitas das pessoas vão se levantar e sair. Um dos brasileiros que mora aqui em Newcastle disse que já foi com um amigo (afrikaner) a uma espécie de clube onde os afrikaners se reunem para fazer churrasco, beber, falar sobre a guerra dos bôeres e, consequentemente, sobre os negros.

Em outros espaços, ser branco é realmente ser a exceção e sentir a minoria - já que 77% da população do país é negra, 11% descendente de europeus ou brancos, 9% coloureds e 3% asiática ². Além do exemplo de Madadeni, que já contei por aqui, experimentei essa sensação andando por algumas das ruas do centro da cidade (aqui chamado de town). Assim, foi com alívio que vi outros dois "brancos" andando pelas ruas do centro, entre os vendedores ambulantes, pedintes e uma maioria negra que circulava por ali - já que andar a pé não é uma coisa que as pessoas brancas fazem comumente por aqui

Na biblioteca pública foi algo parecido. Ainda que o local fosse frequentado por alguns brancos, quando procurei um lugar para me sentar e ler, só achei mesas, cadeiras e sofás ocupados por negros. Sentei em uma espécie de salas com sofás, entre dois homens e uma mulher negros e durante algum tempo recebi olhares curiosos. Ou pelo menos assim me senti. Até mesmo nas seções de livros dá para notar uma certa separação, já que algumas estantes são de livros em afrikaner e outras em zulu, e as zonas mistas parecem ser as estantes em inglês.

Maioria negra andando pelo centro de Newcastle
 Ver brancos andando por ali é coisa rara
Outro dia, rodando em uma sexta à noite pela cidade, passamos em frente a um lugar arrumado e que parecia bem animado, com carros caros e importados parados na porta. No entanto, fomos advertidos por um morador da cidade - que e é afrikaner - de que o local era um restaurante chique que só tocava "música zulu". Tradução: somente para negros.

Lembro que uma das coisas que me impressionou quando cheguei à cidade foi a academia. Lá vi muitos brancos e negros, dividindo o mesmo espaço e convivendo. Ou pelo menos assim eu achava, até o dia em que comentei isso com outra brasileira que mora aqui e ela me disse: "Há negros que frequentam a academia, mas você não vê muitos deles conversando com brancos". E ainda me chamou a atenção para o fato de nós - eu, minha irmã, meu cunhado e ela, todos brasileiros- , sermos praticamente os únicos "brancos" na aula de spinning.

Uma amiga que ficou dois meses na Cidade do Cabo estudando inglês disse que na cidade a situação é parecida. "Pela manhã havia negros e brancos, mas à noite nos bares e boates, negros eram só os garçons", ela contou.

Não sei se pelo fato de estar sendo influenciada por uma visão que já busca essas diferenças e separações, mas muitas vezes me flagro procurando outras pessoas brancas nos espaços em que estou, só para me certificar de que não estou infligindo nenhum padrão de comportamento quanto aos espaços físicos, formal ou não. Para mim, mesmo que legalmente as pessoas possam circular e conviver em qualquer espaço, independente de suas raças, é nitidamente visível que essa ainda é uma "convivência" separada de acordo com a cor de pele.

¹ Trecho retirado do livro HAMILTON, Janice. South Africa in pictures/ by Janice Hamilton - Rev. & expanded. Copyright. 2004. Visual geography series. Com tradução minha
² HAMILTON, Janice. South Africa in pictures/ by Janice Hamilton - Rev. & expanded. Copyright. 2004.

Veja mais fotos do centro de Newcastle na galeria do (vi)Vendo a África do Sul.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A sensação de ser a exceção

Uma visita à township de Madadeni


Como se estivesse sendo transportada diretamente para um documentário sobre o apartheid. Era assim que me sentia no caminho entre Newcastle, cidade onde estou morando na África do Sul, e Madadeni, a township mais próxima. Durante o regime segregacionista, os negros eram obrigados a deixar as cidades e seus espaços públicos para se mudar para as townships, áreas separadas das "cidades" principais. Geralmente esses locais tinham condições precárias de vida, com barracos pobres de zinco, além de lixo e esgoto a céu aberto. Era assim que eu os imaginava, tal qual foram retratrados no filme "Cry Freedom" (1987).

Durante a Copa, as constantes reportagens feitas em Soweto, a maior township do país africano, localizada próxima a Johannesburgo, mostraram um local bem desenvolvido e com casas de fazer inveja a alguns dos bairros de classe média e baixa de cidades do Brasil. Mesmo assim, ainda imaginava Madadeni como um lugar de infra-estrutura precária, como muitas outras townships do país. Em visita na semana passada a um dos jornal regionais, o Newcastle Advertiser, puxei conversa com Bruce Douglas, jornalista que eu estava acompanhando, e perguntei sobre o local. Para minha surpresa ele me disse que a township era até bem desenvolvida, tendo em vista seu passado. "Eu me sinto mais seguro em alguns lugares de Madadeni do que de Newcastle. A única coisa que você precisa fazer é evitar os bairros onde há ações de gangues nas townships", contou Bruce. E prometeu me levar lá no dia seguinte.

Barracos mais simples em Madadeni, e muito lixo espalhado por todos os lugares


Promessa cumprida, seguimos o caminho. Ao entrar na cidade, Bruce me advertiu: "É melhor colocar sua bolsa no chão do carro. Só por segurança". Ok, pensei. Mas fiquei com a sensação de que talvez o lugar não fosse assim tão seguro quanto ele tinha me dito no dia anterior. Realmente, a experiência não foi tão calma. Enquanto rodávamos de carro pela avenida principal, que contorna Madadeni, muitos habitantes, todos negros, olhavam-nos com curiosidade. A sensação era de sermos a atração e a exceção do lugar. Ao longo do caminho tirei fotos, todas de dentro do carro em movimento. Queria descer e conversar com algumas pessoas, mas Bruce disse que não era uma boa ideia. Além disso, tivemos que contornar a cidade pela avenida principal, pois não é seguro andar pelas ruas secundárias que passam no meio das casas.

No entanto, tenho que admitir que fiquei impressionada com a township. Madadeni é bem grande e lá muitas das residências têm eletricidade e esgoto. As ruas principais são pavimentadas e, no caminho, foi possível ver muitas escolas, algumas locais e mais simples, outras grandes e bem desenvolvidas. Muitas das casas têm uma estrutura ótima, com jardins e tudo o mais. Lógico que durante o percurso era possível ver barracos mais simples de zinco e muito lixo, mas Madadeni conta até com um "centro" e um supermercado grande. Certos hostels, estruturas parecidas com prédios para os quais os negros eram obrigados a se mudar durante o apartheid, estão sendo restaurados para se tornarem habitáveis de novo. Quando estávamos saindo da cidade, Bruce me mostrou o "estádio" pertencente à township e acrescentou: "Em Newcastle nós não temos um".

Ruas pavimentadas e casas bem cuidadas

Lendo um documento sobre a cidade, descobri que Madadeni foi planejada para ser uma township modelo. Acredito que em parte tenha funcionado, mas ainda assim o lugar está longe de chegar a ter a mesma infra-estrutura da cidade de Newcastle, mesmo tendo 116 806 habitantes segundo o Censo de 2001 - ou seja, quase a metade da população total da região metropolitana de Newcastle, que compreende Madadeni e outras pequenas "cidades", como Ladysmith, e muito maior do que a população que vive de fato na cidade principal de Newcastle. Observando outros dados do Censo, é possível notar que Madadeni ainda é um retrato do apartheid: 99,8% da população é negra e 94% ainda é considerada "indigente", principalmente por ter sido afastada por décadas das atividades econômicas principais da região.

Veja mais imagens da Madadeni na galeria do (vi)Vendo a África do Sul.