sábado, 11 de setembro de 2010

"Convivência" separada

A divisão dos espaços físicos, ainda que não formalizada como durante o apartheid, separa os frequentadores entre brancos e demais raças nos lugares de Newcastle

Na década de 1950 a África do Sul vivenciou um dos ápices do apartheid, com a assinatura do Ato de Registro da População (Population Registration Act), que classificava as pessoas de acordo com sua "raça". Assim, eles eram separados em brancos, coloureds (quando havia a mistura de duas raças), indianos e africanos (negros). Outros atos contemporâneos também determinaram a criação de homelands, que eram espécies de países separados e controlados por chefes africanos com a assistência (e supervisão)de brancos, nos quais os negros eram obrigados a viver, além das townships. Dessa forma, tudo no país passou a ser dividido. Os casamentos inter-raciais eram proibidos, foram determinados locais separados para as raças e, para entrar nas cidades e espaços reservados aos brancos, os negros, indianos e coloureds deviam portar um passe e comprovar que trabalhavam lá.

Segundo o livro que estou lendo, South Africa in Pictures, "praias, hotéis, prefeituras, ônibus, banheiros, escolas, universidades e arenas de esporte eram todos separados"¹. Muitos desses espaços tinham placas indicando quando eram somente para brancos ou negros. Uma das minha vizinhas aqui de Newcastle, que tem 53 anos e viveu (e ainda vive) na época do apartheid, contou que em determinada hora tocava-se um sinal nas cidades "brancas" e os negros tinham que deixar o local e voltar para suas townships ou homelands.
Placa em várias línguas mostrando que a praia em Durban era reservada a brancos
Foto tirada desse link
Banheiro reservado para negros, asiáticos e coloureds
Foto tirada desse link

Banheiros públicos reservados para brancos
Foto tirada desse link.



Atualmente, 60 anos após o Ato ter sido criado e 16 depois de ter sido banido pela Constituição assinada por Nelson Mandela quando se tornou presidente, as placas e as divisões formais não existem mais. No entanto, a impressão é de que elas ainda continuam lá, pois a separação dos espaços físicos ainda é muito nítida.

Em muitos dos lugares que frequento não há nenhum negro. Isso vale para os restaurantes e também para a "casa de shows" (uma espécie de salão aberto, com um bar, onde as pessoas vão para dançar músicas afrikaner, conversar e beber) a que fui nos últimos finais de semana. Conversando com a vizinha sobre isso, ela me disse que acredita que se algum negro um dia entrar em um desses lugares, provavelmente muitas das pessoas vão se levantar e sair. Um dos brasileiros que mora aqui em Newcastle disse que já foi com um amigo (afrikaner) a uma espécie de clube onde os afrikaners se reunem para fazer churrasco, beber, falar sobre a guerra dos bôeres e, consequentemente, sobre os negros.

Em outros espaços, ser branco é realmente ser a exceção e sentir a minoria - já que 77% da população do país é negra, 11% descendente de europeus ou brancos, 9% coloureds e 3% asiática ². Além do exemplo de Madadeni, que já contei por aqui, experimentei essa sensação andando por algumas das ruas do centro da cidade (aqui chamado de town). Assim, foi com alívio que vi outros dois "brancos" andando pelas ruas do centro, entre os vendedores ambulantes, pedintes e uma maioria negra que circulava por ali - já que andar a pé não é uma coisa que as pessoas brancas fazem comumente por aqui

Na biblioteca pública foi algo parecido. Ainda que o local fosse frequentado por alguns brancos, quando procurei um lugar para me sentar e ler, só achei mesas, cadeiras e sofás ocupados por negros. Sentei em uma espécie de salas com sofás, entre dois homens e uma mulher negros e durante algum tempo recebi olhares curiosos. Ou pelo menos assim me senti. Até mesmo nas seções de livros dá para notar uma certa separação, já que algumas estantes são de livros em afrikaner e outras em zulu, e as zonas mistas parecem ser as estantes em inglês.

Maioria negra andando pelo centro de Newcastle
 Ver brancos andando por ali é coisa rara
Outro dia, rodando em uma sexta à noite pela cidade, passamos em frente a um lugar arrumado e que parecia bem animado, com carros caros e importados parados na porta. No entanto, fomos advertidos por um morador da cidade - que e é afrikaner - de que o local era um restaurante chique que só tocava "música zulu". Tradução: somente para negros.

Lembro que uma das coisas que me impressionou quando cheguei à cidade foi a academia. Lá vi muitos brancos e negros, dividindo o mesmo espaço e convivendo. Ou pelo menos assim eu achava, até o dia em que comentei isso com outra brasileira que mora aqui e ela me disse: "Há negros que frequentam a academia, mas você não vê muitos deles conversando com brancos". E ainda me chamou a atenção para o fato de nós - eu, minha irmã, meu cunhado e ela, todos brasileiros- , sermos praticamente os únicos "brancos" na aula de spinning.

Uma amiga que ficou dois meses na Cidade do Cabo estudando inglês disse que na cidade a situação é parecida. "Pela manhã havia negros e brancos, mas à noite nos bares e boates, negros eram só os garçons", ela contou.

Não sei se pelo fato de estar sendo influenciada por uma visão que já busca essas diferenças e separações, mas muitas vezes me flagro procurando outras pessoas brancas nos espaços em que estou, só para me certificar de que não estou infligindo nenhum padrão de comportamento quanto aos espaços físicos, formal ou não. Para mim, mesmo que legalmente as pessoas possam circular e conviver em qualquer espaço, independente de suas raças, é nitidamente visível que essa ainda é uma "convivência" separada de acordo com a cor de pele.

¹ Trecho retirado do livro HAMILTON, Janice. South Africa in pictures/ by Janice Hamilton - Rev. & expanded. Copyright. 2004. Visual geography series. Com tradução minha
² HAMILTON, Janice. South Africa in pictures/ by Janice Hamilton - Rev. & expanded. Copyright. 2004.

Veja mais fotos do centro de Newcastle na galeria do (vi)Vendo a África do Sul.

3 comentários:

Gabriella disse...

Oi Amiga! adorei o blog,ta interessantissimo as postagens anteiores, as fotos foram feitas por vc?
Dificil pensar que apos tanto tempo ainda exista tanta diferencas quanto a cor da pele, estou vendo que a viagem esta sendo muito proveitosa, e você esta conhecendo bastante lugares ai ne?!
Um bjo grande, e Parabens pelo post, muito interessante

Camila Martins Ramos disse...

O blog está lindo, muito bem escrito e honesto. Mudou todos meus conceitos sobre como é a África do Sul após o apartheid. Confesso que comecei a ler e não conseguir párar até ler a última postagem.
Beijo bem grande

Denise disse...

Ei Gabi!
Pois é. Muita coisa por aqui ainda depende da cor da pele sim, infelizmente.
A maioria das fotos é minha sim. Só as que estão com créditos de outros sites que não.
Visita sempre!
Beijos

Camila,
Que bom que gostou do blog. Eu também me surpreendi e me surpreendo muito com o que vejo por aqui. Mas pelo menos estou conhecendo muita gente que quer que isso mude e não concorda com essa "persistÊncia" do apartheid. Acho que isso vai mudar nas próximas gerações!
Beijos e continue lendo o blog.