terça-feira, 9 de novembro de 2010

O fim (?)

Panfleto do Museu do Apartheid


“O apartheid está exatamente no lugar ao qual pertence: em um museu”. É essa a frase gravada no panfleto que recebemos em nossa visita ao Museu do Apartheid, localizado em Johannesburgo. Lá encerrei meus três meses de pesquisa, estudo e observação sobre as consequências do regime político de segregação racial da África do Sul. O lugar surpreende pela quantidade de história que carrega. Em milhares de paineis, textos, documentos, fotos e vídeos está registrada a opressão que o país vivenciou por mais de quatro décadas.

Logo na entrada já é possível sentir na pele como foi a separação promovida pelo regime. Os bilhetes de entrada são divididos, aleatoriamente, entre brancos e não-brancos. As entradas são separadas e, durante algum tempo, caminha-se em um corredor com placas que indicam que o lugar é para “europeus” ou “não-europeus”. Dos lados, várias cópias em tamanho ampliado de identidade de negros e brancos.

Bilhetes de entrada dividem as pessoas



Entrada para os "não-brancos"

Após a entrada, a história é contada desde o começo, iniciando pela chegada de colonizadores europeus ao país.  E, finalmente, os fatos culminam na segregação formal. Lá estão as propagandas racistas divulgadas pelo Partido Nacional (NP). Lá estão fotos e informações sobre as diversas manifestações pró e contra o regime. Lá está exposta toda a vida de Nelson Mandela, suas fraquezas e sua força, em uma galeria unicamente dedicada a ele.

Lá está uma sala com cordas de forca dependuradas no teto, e que nos conta dos milhares de executados em função do regime. Lá estão registradas todas as leis de separação criadas pelo governo. E, por último, lá está a chamada “sala de negociações”, aonde o longo processo que conduziu ao fim do apartheid é contado em detalhes. E o que me parecia tão pacífico até então, mostrou-se como uma dura e violenta caminhada que se iniciou em 1990 e terminou em 1994, com a eleição do primeiro presidente negro do país nas primeiras eleições democráticas que aquela nação vivenciou.

Painel que conta o início do apartheid e fala sobre a militância da ANC


Todo o caminho percorrido por ali foi mais ou menos igual ao caminho de descobrimento que trilhei nesses três meses na África do Sul. E, embora a frase do panfleto do museu pareça anunciar um presente livre de preconceitos, com os problemas pertencendo ao passado, o país ainda tem um longo trecho para andar até que a segregação racial esteja realmente confinada em um museu.

No entanto, apesar de acreditar que a realidade de um país marcado pelo respeito inter-racial ainda esteja por vir, confesso ter me surpreendido por tudo que a África do Sul já alcançou nesses quase vinte anos de igualdade e democracia. Não sei se por viver em um país no qual, apesar da escravidão de negros ter sido abolida há centenas de anos, ainda há demonstrações muito visíveis de racismo, mas acho que as mudanças em solo sul africanos estão acontecendo em um ritmo acelerado.

A despeito de toda a desconfiança e tensão que percebi entre as pessoas das diversas raças e “tribos”, acredito que a convivência, mesmo que forçada, esteja levando ao reconhecimento de que são, afinal, todos sul africanos, ainda que de origens e culturas muito diversas. E, mais do que isso, está levando à aceitação de que são todos seres humanos. 

Eu na entrada do Museu do Apartheid, com frase de Mandela ao fundo


Foi essa a sensação que trouxe de volta ao Brasil: a de que a África do Sul é um país que, apesar de ter muitas histórias tristes para contar, carrega nas costas de sua nova geração a força e a esperança de, por fim, superar o passado e o confinar em um museu.

Obrigada por me acompanharem na minha caminhada!Minha missão já foi terminada, mas a da busca pela igualdade na África do Sul ainda continua. Resta torcer e esperar para ver se vai haver fôlego suficiente.

Veja mais imagens do Museu do Apartheid na galeria do (vi)Vendo a África do Sul.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Vozes não mais em silêncio

Após o fim da censura imposta pelo regime do apartheid a música ajuda a protestar e preservar um pouco da cultura da África do Sul


Usar a música como forma de manifestação sempre foi um costume entre os negros sul africanos. Na época do apartheid as marchas de protesto contra o regime quase sempre eram acompanhadas por canções que expunham as condições precárias de vida dos não-brancos, enalteciam a ANC e faziam pedidos como "Free South Africa" (libertem a África do Sul). Essa forma de protesto, entretanto, era duramente reprimida, apesar de ainda hoje ser possível escutar a ressonância (nem sempre positiva) das vozes que as cantavam.

Atualmente, com o fim do regime, a indústria musical do país encontrou finalmente a liberdade de expressão e deu oportunidade ao desenvolvimento de muitos artistas locais. Foi em apoio a esses artistas que, em 1997, uma senhora chamada Zonti, que trabalhava na área cultural da municipalidade de Newcastle, teve a ideia de criar uma rádio em Madadeni.

A emissora foi finalmente inaugurada em 2004 e abriu as portas em Madadeni. Hoje, com o nome de Newcastle Comunity Radio Station, a emissora opera dentro do Black Rock Casino, em Newcastle. O cassino oferece o lugar e patrocina a rádio em eventos. "Resolvemos nos mudar para cá porque as oportunidades comerciais eram maiores e, assim, temos mais chances de manter no ar nossa rádio e seu conteúdo", explicou-me Madoda Mdakane, apresentador e operador de som.


A cantora Miriam Makeba, também conhecida como "Mama Afrika", usava
a música como forma de protesto contra o apartheid e acabou exilada por suas canções
Foto tirada desse link

A grade da Newcastle Comunity Radio é composta basicamente de músicas, notícias e programas culturais e educacionais. Cerca de 80% das transmissões é feita em zulu, 10% em afrikans e 10% em inglês. "Como somos uma rádio comunitária, tentamos valorizar as tradições locais, contando histórias sobre o povo zulu, além de transmitir conteúdo educacional para crianças em idade escolar", disse Madoda. Segundo ele, todo mês eles também têm um programa voltado para a prestação de contas à comunidade, além de acompanharem o progresso de reclamações dos ouvintes da rádio. "Tentamos cumprir o nosso papel de accountability", contou-me, todo orgulhoso, o apresentador.

Além disso, de acordo com Madoda, 30% da programação é de conteúdos locais, 50% nacional e 20% internacional. "Tentamos valorizar a cultura local, mas temos poucos artistas por aqui, apesar do incentivo a essa indústria estar crescendo no país", desabafou ele. Mesmo assim, por sua iniciativa de apoio à comunidade e aos artistas locais, a Newcastle Comunity Radio ganhou o prêmio "2010 South African Tradional Music" (SATMA).

Quando perguntei a Madoda sobre qual tipo de música era comum na região, ele me disse que os ritmos mais fortes são o gospel e o kwaito. Intrigada com esse último estilo, do qual nunca tinha ouvido falar, resolvi pesquisar sobre ele. Descobri que o kwaito, que Madoda classificou como "uma espécie de hip hop sul africano", tem realmente muito a ver com o hip hop.

Surgido nas periferias norte americanas e cantado sobretudo pelos negros, o hip hop é uma expressão das camadas sociais mais desfavorecidas e expõe a cultura e os problemas enfrentados por eles. No caso do kwaito, a música tem uma forte ligação com o apartheid, pois floreceu justamente no período após o fim do regime, como uma forma de protesto dos moradores das townships contra as precárias condições de vida que tinham. Até mesmo o nome kwaito remete a um contexto político, pois é derivado da palavra afrikans kwaai, que significa zangado.


Atualmente, os temas das canções foram ficando mais apolíticos, mas ainda assim servem como uma forte expressão da cultura das "favelas" sul africanas. Além disso, o kwaito tem uma vantagem em relação às tradicionais canções de manifestação da época do apartheid: o estilo musical vem ganhando expressão não somente nacional, mas também internacional, na voz de artistas como Arthur Mafokate e Zola. Assim, o mundo pode finalmente ouvir as vozes sul africanas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A oportunidade de mudar

Quando se tornou presidente da África do Sul, Nelson Mandela teve que encarar um grande desafio: não deixar que o país passasse a viver um apartheid às avessas. Os ódios interraciais provocados pela opressão dos negros pelos brancos durante o regime de segregação pareciam conduzir a uma necessidade de vingança dos primeiros sobre os últimos. No entanto, Mandela conseguiu, em parte, driblar essa tensão e transformar o país em um território pacífico.


Ainda assim, a lembrança do que sofreram ainda faz muitos negros se revoltarem com essa convivência com os brancos (e vice-e-versa), principalmente porque esses ainda detém melhores condições de vida. Muitos se indignam com a posição de submissão que o regime lhes impôs, mas acredito que tanto a indignação quanto a desigualdade são condições que vêm mudando.

Depois de vivenciar o cotidiano de Newcastle por quase três meses, sobrou-me a alegre impressão de que as novas gerações estão dando uma nova cara à África do Sul e conseguindo viver uma vida mais livre de preconceitos. Outro dia fui apresentada à personificação dessa minha esperança: uma jovem estudante de arquitetura chamada Poome. Já falei um pouco sobre ela aqui, mas volto a contar um outro lado de sua história.

Colega de trabalho da minha irmã em um escritório de arquitetura aqui da cidade, Poome é descendente de zulus. Além da língua materna, ela fala inglês, xhosa, um pouco de afrikans e cerca de cinco línguas indianas, que aprendeu por ter estudado em uma escola de descendentes de imigrantes da Índia durante o apartheid.

Após ter estudado em lugares destinados a não-brancos durante a vida toda, em 1994, assim que o regime acabou completamente, Poome foi matriculada em uma escola que antes era somente para brancos. "Minha mãe queria que eu tivesse um ensino de qualidade, por isso assim que teve oportunidade me fez mudar para essa escola. No começo foi difícil a adaptação aos novos tempos. Até mesmo os professores ficavam um pouco desconfiados por ver um aluno negro ter melhor desempenho do que um branco, por exemplo", contou-me.

Cursar a Universidade de Durban foi um novo desafio. "As classes já eram mistas e eu tive vários colegas e amigos brancos, mas era engraçado ver como negros e brancos ainda sentavam separados na sala de aula", descreve Poome. Segundo ela, um fato muito curioso era um amigo descendente de afrikaners, mas que falava zulu fluentemente, como primeira língua. "Ele cresceu cercado por empregados e babás zulus e, como criança não tem maldade, essa foi a língua que ele aprendeu desde cedo", disse.

Segundo ela, o complicado era para as crianças negras, que muitas vezes acompanhavam suas mães ao trabalho. "Na nossa tradição zulu, os mais jovens devem sempre respeito e admiração aos mais velhos. Por isso era complicado para nós, crianças negras, entender porque nossas mães eram maltratadas e muitas vezes até apanhavam de pessoas brancas bem mais jovens do que elas, muitas vezes crianças como nós. Não entendíamos porque elas se sujeitavam àquilo", desabafou.

Hoje, Poome se orgulha de estar concluindo os estudos e de ter conseguido o trabalho no escritório de Newcastle. "Muitas pessoas ficam admiradas e me parabenizam por ser uma mulher negra e arquiteta", conta, dizendo que na África do Sul a maioria dos arquitetos são homens. No entanto, nem sempre as escolhas dela foram bem vistas. "Tenho muitos tios que ficaram indignados ao saber que no trabalho aqui no escritório eu teria chefes brancos, afrikaners. Eles perguntavam: 'você vai deixar eles mandarem em você?' e se indignavam ao saber que eles conversvam em afrikans na minha frente", conta. Poome, entretanto, diz que sempre foi super bem recebida e tratada no trabalho, e que aprendeu muito por lá. "Acho que a questão é saber valorizar as oportunidades, pois só assim vamos conseguir mudar as coisas".

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Poder em xeque

Os conflitos pelo poder na África do Sul vão muito além da disputa entre negros e brancos, como já dito aqui sobre a Guerra dos Boêres e a permanência da tensão entre descendentes de ingleses e afrikaners. Entre as tribos negras também houve sempre luta para assumir o controle do país. Por alguns dos relatos que ouvi durante minha estadia, essa luta continua até hoje.

O filme The Power of One mostra como mesmo passando por uma situação degradante e comum durante o regime de segregação racial, descendentes de diferentes tribos negras, como os zulus, os xhosas, os sothos, entre outros, ainda discordavam e brigavam entre si.

É por isso que na trama o personagem negro Piet chama PK, branco descendente de ingleses, de RainMaker ("fazedor de chuva"). O título tem origem em um mito que se perpetuava entre as tribos na África do Sul. Segundo ele, quando havia muita tensão entre os povos africanos, era a chuva que vinha abaixar a poeira e acalmar as coisas. No filme, PK aprende a falar os idiomas das várias tribos e ajuda a todas, inclusive buscando maneiras de os unir em torno de objetivos comuns.

Representantes da tribo Xhosa, da qual Nelson Mandela era descendente
Foto tirada desse link


Na realidade, a disputa remonta a tempos anteriores à chegada dos colonizadores. Durante os tempos do apartheid, a disputa se acalmou, com a criação das homelands e com cada tribo assumindo sua "nacionalidade". Além disso, todos travavam uma luta em comum contra o regime. Com a proximidade das eleições de 1994, no entanto, as disputas se agravaram.

A colega arquiteta da minha irmã, Poome, é descendente de zulus e, embora não siga muitas das tradições de seu povo, sabe um bocado da história dele para contar. Segundo ela, uma das lembranças mais antigas que tem é datada próxima ao ano da eleição de Nelson Mandela. Os dois partidos negros que lutavam contra o apartheid, o Congresso Nacional Africano (ANC) e o Congresso Pan-Africano (CPA), começaram a disputar entre si para assumir o controle do país. "Lembro da minha mãe nos levar escondidos para a casa dos meus avós, que era no campo, porque no local onde morávamos os dois partidos começaram uma guerra. Ouvíamos tiros por todos os lados. Se um integrante da ANC chegasse à sua casa e você tivesse um carteira do CPA, eles queimavam sua casa e matavam sua família. E vice-e-versa".

Hoje os negros se orgulham e se enchem de esperança por terem assumido o controle do governo do país, condição essa que acredito ser difícil de mudar, já que a população negra é maioria no país, o que se reflete nas urnas. No entanto, mesmo tendo como objetivo comum reverter a desigualdade imensa que foi gerada pelos tempos do regime de segregação racial, as tensões continuam.


O atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, usando seus trajes zulus
durante um de seus quatro casamentos
Foto tirada desse link


"As pessoas não se preocupam se o novo presidente é uma boa pessoa, correta. Eles não se importam com quem está governando o país, desde que seja da tribo deles. Assim, quando Nelson Mandela assumiu, os xhosas, sua tribo, ficaram todos orgulhosos. Agora, com Jacob Zuma no poder, são so zulus que se vangloriam", contou-me Tiner, um vizinho afrikaner que nunca se sentiu satisfeito com o novo modo de governar o país. Segundo ele, essa instabilidade e a tensão não são exclusividade da disputa entre negros e brancos. "Eles (negros) não procuram ajudar uns aos outros. Estão somente preocupados com seu próprio povo", afirma.

No entanto, ter conseguido unir todas as tribos em um único território nacional, evitando conflitos armados, parece ter sido o maior triunfo da África do Sul e do ex-presidente Mandela. Ainda que seja uma convivência separada, pode-se dizer que é pacífica, mesmo sem agradar a todos. Mandela bem que merecia o título de RainMaker. Agora, como será o país após sua morte, é uma pergunta que ainda espera por ser respondida.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

História forte ou "Forte" história?



O Forte Amiel, sediado em Newcastle, serve como memória e conta um grande pedaço da história da África do Sul. Construído em 1877, o forte abrigou tropas britânicas e zulus durante a Guerra dos Zulus e as duas Guerras dos Bôeres. Lá estão registrados e reproduzidos fatos dessas três importantes batalhas, que marcaram o país e o relacionamento futuro entre várias "tribos" sul africanas.

Veja mais fotos do Forte Amiel na galeria do (vi)Vendo a África do Sul.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Um drama na realidade

Sempre acreditei que filmes são uma forma incrível de ensinar história. E aqui tive oportunidade de comprovar esse crença. Outro dia, assistindo televisão, deparei-me com o drama The Power of One  (em português, O poder de um jovem). Lançado em 1992 - antes de 1994, considerado como o ano formal do fim do apartheid, com a eleição de Mandela -, o filme do diretor John G. Avildsen é um emocionante retrato da discriminação racial na África do Sul.

A história de PK, filho de ingleses que se mudaram para o território sul africano para se tornar fazendeiros, mostra como o país sempre foi marcado por conflitos e tensões. Em seu caminho, o jovem tem a oportunidade de conviver com pessoas de diversas raças e tribos, e acaba se engajando na luta pela igualdade durante o período do apartheid. Apesar de ser ficção e uma produção norte americana, o filme carrega uma dose enorme de realidade e me fez vivenciar e ficar indignada com várias situações mostradas.





Além disso,o drama conta um pedaço da história da África do Sul que não é tão conhecido: a ligação fortíssima entre o regime de segregação racial e o nazismo. A relação é clara. Assim como os nazistas buscavam a "purificação" mundial, através do fortalecimento da raça ariana e da limpeza das demais raças, os afrikaners também queriam impedir a mistura com os negros. E foi no regime criado por Hitler que buscaram a inspiração e as justificativas para o apartheid.

E há outra conexão, não tão óbvia. Durante o período de colonização, ingleses e holandeses disputavam o poder sobre o continente e suas riquezas. A tensão entre os dois povos colonizadores levou às duas Guerras dos Bôeres, ambas vencidas pelos ingleses. A disputa remete ao nazismo porque os britânicos, como estratégia de guerra, colocavam mulheres e crianças descendentes de holandeses em campos de concentração. Dessa forma, evitavam que os homens afrikaners fossem para a batalha, permanecendo em casa para proteger a família.

Essa iniciativa culminou em um intenso ódio entre afrikaners e ingleses, mesmo após o fim das Guerras e do acordo firmado entre os dois povos para governar o país juntos. No filme, PK vai para uma escola afrikaner e sofre vários tipos de intimidação e humilhação por parte de seus colegas. Na realidade, hoje a tensão é bem menos explícita e em menor escala, mas ainda presente.

No Forte Amiel, em Newcastle, que assistiu às duas Guerras dos Boêres
a reprodução dos instrumentos usados pelos ingleses


Por ter vizinhos tradicionais e descendentes de afrikaners, já tive algumas oportunidades de ouvir conversas que evidenciam resquícios dessa disputa. Uma das vizinhas, durante um braai, tentava me ensinar algumas palavras em afrikans e vez ou outra comentava: "Os ingleses também usam essas nossa palavra, porque eles não conseguiram criar uma palavra na língua deles para dizer a mesma coisa". Outra frase comum era: "Os ingleses falam muito rápido, e precisam usar várias palavras para dizer uma coisa que nós somos capazes de falar com apenas uma expressão. É por isso que muitas vezes não nos entedemos".

Conversando com a vizinha de porta, perguntei se a tensão entre ela e a nora dela - uma sul africana descendente de britânicos - tinha alguma coisa a ver com essa disputa. Ela me garantiu que não, mas que o pai dela, um tradicional bôer, provavelmente teria problemas com isso. E acrescentou: "Hoje convivemos bem, mas muitas vezes eles (descendentes de ingleses) são esnobes. Eles se acham melhores do que nós."

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Além do preto e branco

O regime do apartheid significou uma divisão do território sul africano que foi além da distinção entre negros e brancos, envolvendo também os imigrantes indianos


Antes de vir para a África do Sul, sempre imaginei o apartheid como um regime de segregação entre negros e brancos, e de opressão dos últimos sobre os primeiros. Quando cheguei aqui, entretanto, descobri que o racismo pregado por esse sistema político foi muito além dessa simples divisão.

Há cerca de 150 anos, imigrantes da Índia foram atraídos para o país, muitos buscando "melhorar de vida" com a descoberta de riquezas minerais, como ouro e diamante. A maioria, no entanto, veio para trabalhar nas plantações de cana de açúcar. Quando chegaram aqui, o que vivenciaram, ao invés de prosperidade, foi a discriminação.


Indianos chegando pela primeira vez a Durban, África do Sul
Foto tirada desse link

Durante o período do apartheid, assim como os negros e os coloureds, os imigrantes indianos - e asiáticos no geral - também foram obrigados a portar passes e a viver em lugares separados. Como me contou Jane, a secretária indiana do escritório em que minha irmã trabalha, "é por isso que hoje moro longe, no 'bairro dos indianos'. Durante o regime, éramos obrigados a morar fora da cidade. Se nos descobrissem andando pelas ruas do centro sem permissão, éramos presos".

Segundo ela, diversos espaços públicos e privados não podiam ser frequentados pelos indianos, como restaurantes, salões de beleza, bibliotecas, hospitais, hotéis, escolas, entre outros. "Como éramos proibidos de estudar nas escolas daqui, começamos a criar as nossas próprias, além de passar a morar em uma área onde pudessemos conviver", disse-me. Um exemplo dessas iniciativas foi a Universidade de Durban-Westville, criada em 1970 e que hoje faz parte da Universidade de Kwazulu-Natal. A instituição foi construída com apoio financeiro dos indianos sul africanos para que seus filhos pudessem fazer curso superior. Até então, para conseguir esse tipo de formação, era preciso ir até Salisbury Island, uma prisão abandonada que servia como universidade.


Atualmente a Universidade de Durban-Westville faz parte da
Universidade de Kwazulu-Natal, e é aberta a todos
Foto tirada desse link


Os indianos também tiveram um papel importante na militância contra o apartheid. "Até mesmo (Mohandas) Gandhi veio à África do Sul. E é curioso que, em uma de suas viagens no país, expulsaram ele do trem porque indianos e negros não podiam andar na primeira classe e ele se recusou a ir para a terceira classe. Mesmo assim, Gandhi ficou um bom tempo por aqui, tentando ajudar as pessoas a se fortalecer e construir um novo lar dentro do regime de segregação", explicou Jane. Por isso, devido aos 20 anos de militância do pacifista indiano em solo sul africano, alguns costumes originários da Índia foram mantidos, como o uso do "terceiro olho", que Jane ostenta com orgulho, explicando que é um símbolo de que ela é casada.

Mesmo acreditando que muita coisa mudou após o fim do regime, Jane disse que algumas pessoas mais velhas ainda têm uma certa dificuldade em lidar com os novos tempos. "Acho que depende de cada um assumir uma postura e ir atrás do que quer. Assim como eu, que estou trabalhando. Também matriculei meu filho em uma escola que é de maioria branca, porque a qualidade do ensino é melhor e eu quero que ele conviva com pessoas diferentes", apontou ela.


Uma noiva sul africana descendente de indianos, já com o terceiro olho
Foto tirada desse link

No entanto, mesmo que as coisas estejam melhores agora e os indianos tenham recuperado o direito de ir e vir, Jane acredita que eles continuam levando desvantagem. Ela contou que os descendentes de imigrantes da Índia sempre apoiaram a ANC em sua luta contra o regime. Por isso, quando aconteceram as primeiras eleições democráticas, havia filas de pessoas indo votar cheias de esperança.

"Depois de 1994, o que vivenciamos foi uma inversão do regime, com os negros assumindo o poder. No entanto, ainda que eles estejam lutando para melhorar a qualidade de vida deles, através de iniciativas como o BEE, os indianos foram esquecidos", desabafa. Isso acontece, segundo ela, porque os indianos, por terem uma cultura própria, muitas vezes não são enxergados como sul africanos. "Mas eu sou sul africana. Eu nasci aqui e nunca nem mesmo visitei a Índia. E até alguns costumes de lá eu não sigo", contou-me, mostrando o cabelo curto que deveria ser comprido e contando do marido, com quem ela não poderia se casar na Índia.

Enquanto almoçávamos juntas aqui em casa, Jane fez uma constatação simples, mas que realmente me fez ver como as coisas eram na época, e o quanto há de esperança pelas mudanças que estão acontecendo: "Naquela época, eu não poderia estar aqui conversando e comendo com vocês. Eu nem mesmo poderia trabalhar com a Debora (minha irmã)".

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Os símbolos e a identidade nacional

A criação de símbolos é o ponto de partida para a formação da identidade nacional, principalmente quando se trata de uma nação que acabou de passar por mudanças drásticas e quer que o passado seja superado. Exemplos históricos dessa iniciativa nós temos de sobra, a começar pelo próprio Brasil, quando virou uma República.

Na África do Sul, a conduta não poderia ser diferente. Com o fim do apartheid, muitos símbolos foram alterados na tentativa de apagar as diferenças geradas pelo regime e promover a igualdade em um "novo" país, democrático. Não é preciso nem citar que o principal passo foi a criação de um inquestionável (ou quase) herói nacional, que virou também referência internacional.


Imagens de Nelson Mandela estão por toda parte na África do Sul:
aqui, o heroi nacional em foto do Forte Amiel, em Newcastle

O posto foi facilmente assumido por Nelson Mandela, principalmente pelo papel decisivo que o militante da ANC teve na luta anti-apartheid e também nas negociações com F. W. de Klerke, que culminaram no fim da política de segregação racial. Além, é claro, do fato de ser um mártir perfeito, após passar 27 anos na prisão de Robben Island por se opor ao regime. Ao ser eleito o primeiro presidente (negro) em eleições livres, pacíficas e democráticas no país, ganhou de vez o título de herói.

E foi também Mandela quem contribuiu para a criação de um novo símbolo da igualdade na África do Sul, que mais tarde foi reforçado por outro heroi nacional, o Arcebispo Desmond Tutu: o termo "Rainbow Nation" (Nação Arco-Íris). A expressão é uma metáfora sobre a diversidade de cores do país, todas convivendo em um mesmo arco-íris.



Outro reconhecido heroi nacional, Arcebispo Desmond Tutu
Foto tirada desse link

No entanto, era preciso mais do que isso para apagar - ou ensinar a respeitar - as diversidades. Por isso, dois dos principais símbolos nacionais também foram alterados: a bandeira e o hino nacional.

Desenhando uma nova nação

Sustentada em competições, reuniões e cerimônias nacionais e internacionais, a bandeira de um país é um dos elementos mais importantes para o reconhecimento de uma nação. Até por estar associada a todas essas ocasiões, a flâmula é uma das primeiras coisas a ser evocada e reconhecida quando se fala de nacionalismo. No caso da África do Sul, a antiga bandeira - laranja, branca e azul e com pequenas bandeiras da Inglaterra e da Holanda desenhadas em seu centro - , remetia ao poder dos descendentes brancos de holandeses e ingleses, que sustentavam o apartheid.


Antiga bandeira da África do Sul
Foto tirada desse link

Com o fim do regime, em 1994, houve um concurso para a criação de uma nova bandeira. A vencedora foi adotada em abril do mesmo ano. Como explicado no site Sua Pesquisa: "Em seis cores (preta, amarela, verde, branca, vermelha e azul), a bandeira da África do Sul apresenta no centro um "Y" deitado. Este "Y" simboliza a convergência em uma só nação, após o regime de apartheid". Além disso, as cores também foram cuidadosamente escolhidas para representar a imagem do novo país que surgia.


A nova bandeira da África do Sul atualmente é ostentada em vários lugares
pelos sul africanos

De início, alguns afrikaners apresentaram bastante resistência ao novo símbolo e continuavam sustentando bandeiras antigas, principalmente como forma de manifestar sua contrariedade em relação ao novo governo. Um exemplo disso é a cena do filme Invictus, em que Mandela (representado pelo ator Morgan Freeman) entra no estádio para assistir a um jogo da Copa do Mundo de Rugby de 1995 e fica feliz com a presença de várias pessoas segurando a nova bandeira. A maioria branca (já que o rugby era um esporte "branco", sendo o futebol deixado para os negros), entretanto, continuava empunhando a antiga flâmula. A resistência - tanto ao novo governo quanto aos símbolos criados por ele - foi vencida com o tempo, e a nova bandeira foi adotada por todos, como o mundo pôde assistir durante a Copa do Mundo de Futebol de 2010.

Cantando a diversidade

O hino nacional também passou por uma adaptação curiosa. Como já dito por aqui, a África do Sul tem 11 línguas oficiais. Para representar toda uma nação, foi criada uma canção capaz de abarcar cinco dessa línguas, e demonstrar a nova constituição do país, além de contar um pouco de sua história. Assim, cada verso ou estrofe é cantado em um idioma, mostrando o quão diversa e, muitas vezes, incompreensível, é essa mistura sul africana.



Hino Nacional: línguas e tradução

Nkosi Sikelel iAfrica
Nkosi sikelel' iAfrica (Deus abençoe a África)
Maluphakamis'uphondo Iwayo (Deixe seus chifres ser levantados)
Yizwa imithanda yethu (escute também as nossas preces)
Nkosi sikelela, (Deus nos abençoe)
(language: isiXhosa)

thina lusapho Iwayo (nós, a família da África)
(language: isi Zulu)

Morena boloka sechaba sa heso (Deus abençoe nossa nação)
O fedise dintwa le Matswenyeho (Acabe com as guerras e sofrimento)
Morena boloka sechaba sa heso (Deus abençoe nossa nação)
O fedise dintwa le Matswenyeho (Acabe com as guerras e sofrimento)
O se boloke, O se boloke sechaba sa heso (Salve, salve, nossa nação)
Sechaba sa South Afrika - South Afrika (A nação da África do Sul)
(language: Sesotho)

Uit die blou van onse hemel (Dos nossos céus azuis)
Uit die diepte van ons see, (Das profundezas do nosso mar)
Oor ons ewige gebergtes, (Através de nossas eternas montanhas)
Waar die kranse antwoor gee (Onde os ecos dos penhascos ecoam)
(language: afrikaans)

Sounds the call to come together (Soa o chamado para se unir)
And united we shall stand (E unidos ficaremos)
Let us live and strive for freedom, (Vamos viver e lutar pela liberdade)
In South Africa, our land. (Na África do Sul, nossa terra)



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terça-feira, 12 de outubro de 2010

Aprendendo a mudar

As escolas assumem importante papel ao ensinar as crianças sobre os acontecimentos do passado e ao promover a união multi-racial para o futuro

Quando era criança, todos os dias Eric Dlomo, um menino negro que vivia em uma área rural da África do Sul, tinha que andar dez quilômetros para ir para a escola, e outros dez para voltar. Fizesse chuva ou sol, se ele quisesse estudar, essa era a única opção. E foi isso que ele fez, durante seis anos, para conseguir se formar. Hoje, vice-diretor de uma escola municipal em Newcastle e já na casa dos 40 anos, sentado em seu escritório, Dlomo me contou que muita coisa mudou desde o fim do apartheid.

Criado na vila de Nkandla - a mesma em que nasceu Jacob Zuma, o atual presidente do país -, Dlomo disse que as condições de estudo para os negros eram muito precárias naquela época: "Eu, por exemplo, fiz a minha 8 ª série debaixo das árvores, já que não havia salas disponíveis para nós no prédio da igreja que era usado como escola. E nós estudamos ali, a céu aberto, durante cerca de um ano e meio".


Eric Dlomo em seu escritório na Hope High School

Segundo Dlomo, todos seus professores eram negros também e, apesar de supostamente ter que ensinar os alunos em inglês, muitos deles não estavam capacitados para isso. "As aulas deveriam ser em inglês, mas os próprios professores não estavam preparados. Eles estavam lutando contra as novas línguas. Assim, usávamos ambos: zulu e inglês", explicou-me.

Somente quando chegou à faculdade, logo após o fim do regime de segregação racial, Dlomo vivenciou a experiência de conviver com colegas de sala brancos. Ele conta que aquele contato, entretanto, não pode ser descrito como uma forma de superação das diferenças. "Ainda existia muita tensão, porque era muito recente a introdução do sistema multi-racial nas universidades. E esse sistema existia apenas teoricamente, já que na prática tudo continuava separado. Nas salas de jantar, por exemplo, os negros continuavam sentando com os negros, e os brancos com os brancos", relatou ele.

A ampliação do ensino na Huttenpark School Primary School

Hoje, as coisas parecem finalmente estar mudando. Pelo menos é o que demonstra o exemplo da Huttenpark Primary School, a escola primária do bairro em que moro aqui em Newcastle. Durante os anos do apartheid, a escola era destinada somente para alunos brancos, mas desde 1995 abriu suas portas e hoje atende a várias crianças negras. A primeira vez que fui até lá, fiquei encantanda com a convivência entre meninos e meninas de várias raças, brincando juntos no parquinho colorido da escola, com seus uniformes laranja e vermelhos.

Segundo a coordenadora da escola que me recebeu, Anetjie Hay, uma senhora afrikaner que é professora desde 1968, a resistência ao sistema multi-racial de ensino se restringiu aos primeiros anos de mudança. "No começo, um ou dois anos depois que nós abrimos as nossas portas a todas as pessoas, as crianças estranharam um pouco. Mas agora está tudo bem", disse ela. E acrescentou, tentando mostrar que o país está se esforçando para promover a união e a igualdade: "Aqui, as crianças brancas vão e brincam com as negras. E isso está acontecendo em todos os lugares, já que, se você olhar nos bancos, nas lojas, verá que nós todos usamos as mesmas coisas e as compramos dos mesmos lugares".


Uma das classes de inglês da Huttenpark School

As línguas ensinadas na Huttenpark School também mudaram. Enquanto durou o regime de segregação racial, os alunos eram obrigadas a aprender em afrikans. Atualmente, entretanto, a escola é bílingue, e ensina em afrikans e em inglês. "Cada série tem duas classes: uma com aulas em afrikans, e outra em inglês. E temos também uma terceira língua, obrigatória para todas as crianças desde a quarta série, que é o zulu", explicou-me Hay. Segundo ela, em outras províncias, o terceiro idioma adotado pelas escolas pode ser venda, ou tsonga, ou outra língua que é falada nessa área. "As escolas não são obrigadas a ter disciplinas dessas línguas, mas o governo nos oferece um professor extra se decidirmos ensiná-las. Nós optamos pelo zulu e temos uma professora que já está aqui há cinco anos", apontou Hay, que acredita que a medida ajuda a aproximar as pessoas.

No entanto, a coordenadora me mostrou que ainda é possível distinguir as classes de inglês das de afrikans por uma característica muito visível: a cor da pele dos alunos. "Olhe pela janela", ela me pediu. Obedeci e vi uma fila de crianças, negras e brancas, todas muito bem comportadas, esperando para entrar na sala de aula. "Essa é uma das classes de inglês, e você pode perceber isso porque também há crianças negras. A maioria dos pais negros, coloureds e indianos preferem matricular seus filhos nas classes de inglês. Atualmente, nós não temos nenhuma criança coloured ou negra nas classes de afrikans", desabafou. Para ela, entretanto, a questão é compreensível, já que durante os anos de apartheid o governo tentou impor o afrikans como língua oficial, para matar os outros idiomas nativos do país.

Outro aspecto que mudou na Huttenpark School foi o ensino de história. Na época do apartheid, as versões sobre o regime eram controladas. "A matéria ensinada mudou muito com a adoção de um novo currículo após 1995. No começo, alguns estudantes negros não se sentiam confortáveis, mas agora o assunto é ensinado de maneira neutra", contou Hay. De acordo com ela, a questão não é abordada com as crianças menores, mas as mais velhas aprendem esse pedaço da história da África do Sul da maneira correta. "Eles aprendem sobre Nelson Mandela e todas os outros personagens negros que foram importantes para o nosso país, como Steve Biko".

A mudança radical da Hope High School

Muitas das escolas brancas vivenciaram uma abertura para estudantes negros após o fim do apartheid, assim como a Huttenpark. Para uma delas, entretanto, a mudança significou uma reversão dos tempos de regime. A Hope High School, escola municipal de Newcastle, também era destinada somente para alunos brancos, mas com o fim da segregação racial formal, acabou virando uma escola só de negros. "Imediatamente após o fim do apartheid, os brancos foram tirados daqui pelos pais e hoje ela é puramente constituída de alunos negros", explicou Eric Dlomo, vice-diretor.

No entanto, a Hope High é uma das poucas da cidade a ter um quadro multi-racial de professores. "Dos 42 professores, 10 são negros, dois indianos e 30 são brancos", apontou Dlomo. Segundo ele, a mistura funciona como uma maneira de integrar realidades distintas. "Algumas vezes há uma tensão desnecessária, principalmente porque professores e alunos vêm de culturas diferentes, não só por causa da origem racial, mas também por causa da idade. Mas é interessante ver, no final do dia, as pessoas se entendendo, porque apesar de ter culturas diversas, eles têm o mesmo objetivo aqui na escola. É isso que faz uma criança perceber: 'eles têm interesse em mim. Então nós não somos inimigos, apesar de sermos culturalmente diferentes' ".


Prédio com as salas de aula da Hope High School

Outra medida de integração que a Hope High adotou foi ajudar a desenvolver e a formar estudantes a partir do uso do inglês. "Todas as aulas são ministradas em inglês. E nós temos aulas de zulu também, como segunda língua, já que é o idioma materno da região em que vivemos", contou-me Dlomo. E a medida tem efeito na integração e na formação cultural das crianças. Foi o que me contou uma das alunas da Hope High, chamada Mbali. "Em casa conversamos predominantemente em zulu, mas com os amigos falamos às vezes em zulu e às vezes em inglês. E às vezes misturamos inglês e zulu, formando o que chamamos de inglizulu", explicou-me.

Apesar de tudo, as diferenças

Apesar de buscar a integração racial e valorizar a participação dos negros no sistema educacional do país, Huttenpark e Hope High School têm uma diferença grande: os alunos das duas escolas, infelizmente, têm origens econômicas e sociais bem diversas.

Enquanto os estudantes da Huttenpark são estimulados a praticar atividades diversas, como artes, dramatização e diversos esportes - como rugby, críquete, natação, tênis e outros -, os da Hope High não contam com as mesmas oportunidades. "Não é que a escola não queira oferecer essas atividades extra, mas é porque vários dos alunos vêm de áreas distantes, e o meio de transporte que eles usam são os ônibus públicos", apontou Dlomo. Segundo ele, quando as aulas terminam, essas crianças têm que correr para pegar o ônibus e, caso a escola os retenha com outras atividades, eles não terão como voltar para casa: "Nesses casos, os pais teriam que pagar para eles usarem algum tipo de transporte privado. Então nós até chegamos a discutir a escolha de um dia para terminar a aula mais cedo e trazer as crianças para atividades extra-classe, mas a proposta não foi aprovada".


Piscina da Huttenpark School
Os alunos da escola praticam várias atividades extra-classe,
 já os da Hope High não têm o mesmo privilégio

Segundo o vice-diretor da Hope High, muitas dos alunos vêm de famílias com pais desempregados ou falecidos. "Então o que acontece é que essas crianças muitas vezes têm que assumir o papel desses pais e se tornam mais vulneráveis. E, assumindo as tarefas de cuidar de uma família, que tempo elas terão para fazer os deveres da escola e estudar?", desabafou ele.

É por causa dessas diferenças que, apesar de não ter aulas de história como a Huttenpark School, a Hope High tem uma matéria específica que remete aos tempos do apartheid. Chamada de Life Orientance (Orientação sobre a vida), a disciplina ajuda os alunos a enfrentar desafios e a se comportar diante das várias situações cotidianas, ensinando valores e técnicas de valorização. "Depois do regime, você podia encontrar gênios que não conseguiam se formar porque estavam se afundando em drogas e coisas assim. Então o governo determinou a criação dessa matéria, para ajudar os alunos a lidar com os problemas ao longo da vida", explicou o vice-diretor.

Um ponto em comum entre as duas escolas, entretanto, é que elas parecem mostrar que o país caminha para um futuro diferente. Tanto Hay quanto Dlomo disseram acreditar que as novas gerações pensam diferente das antigas. "As coisas estão mudando, mesmo que isso seja difícil para algumas pessoas. Do mesmo jeito que é difícil para as pessoas brancas de idade mudarem seu pensamento, para as pessoas negras mais velhas também é. Mas, para as crianças, isso é mais fácil", acredita Hay. E um dos casos que Dlomo me contou evidencia bem essa mudança: "Lembro de uma aluna que visitou nossa casa e fez um comentário muito bom: 'Queria que todos parassem de dividir e ver as pessoas como negras ou brancas. Eles deviam enxergar todos apenas como pessoas'. Para mim, aquilo soou poderoso, por causa da idade dela. Eu eu imaginei comigo mesmo: se não houvesse demarcação racial, que país a África do Sul poderia ser!"

Veja mais fotos das escolas na galeria do (vi)Vendo a África do Sul.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Até que a morte os separe (ainda mais)

A distribuição desigual de recursos, herança do apartheid, contribui para que os sul africanos tenham padrões muito diferentes de vida e de morte


Pouco tempo depois de escrever sobre a separação dos espaços físicos aqui em Newcastle, li em um livro uma informação muito interessante, que me remeteu ao assunto. Segundo o autor, Vernon Domingo, que é um professor sul africano e foi considerado como coloured durante o apartheid, um dos lugares em que essa separação física ainda é muito visível - e vai continuar sendo por várias gerações - são os cemitérios.

De acordo com Domingo, os locais onde as pessoas eram enterradas são marcas de segregação não apenas por causa da questão óbvia de que negros e brancos eram sepultados em espaços diferentes, com condições bem distintas de conservação. A marca maior a que ele se refere é a distância que existe entre as datas gravadas nos túmulos. Isso porque elas "indicam a grande diferença na expectativa de vida. Os sul africanos negros morriam, em média, 14 anos antes do que seus conterrâneos brancos"¹.



Na África do Sul, até mesmo cemitérios permanecem como marcas da segregação racial
dos tempos de apartheid
Foto tirada desse link


O autor conta que isso acontecia por diversos fatores, já que, desde o nascimento, brancos e negros vinham ao mundo em hospitais diferentes - principalmente pela qualidade. E essa distinção se prolongava pelo resto da vida: eles tinham condições de moradia, saúde e trabalho distintos, além de acesso desigual a informações e educação. Até mesmo a distribuição de recursos básicos para a vida humana, como a água, não era igual. Em muitas das townships as pessoas conviviam com esgoto a céu aberto e falta de água potável.

Mesmo após o fim do apartheid, essas desigualdades ainda são muito visíveis. Segundo Domingo, "uma típica garota negra de 14 anos em uma vila rural da África do Sul ainda tem muito menos acesso a condições adequadas de alimentação, casa, água e educação do que uma garota branca na cidade de Johannersburgo"².

Com a ascensão do novo governo, várias iniciativas econômicas e sociais vêm sendo pensadas para diminuir essa disparidade. Uma delas é o projeto Capacitação Econômica da Maioria Negra (ou Black Economic Empowerment - BEE), que procura aumentar a participação dos negros na economia do país. Uma das iniciativas do projeto é a política de cotas raciais para empregos. A medida é bem polêmica e, na minha opinião, contribui para suscitar ainda mais os ódios interraciais, apesar de ser uma das soluções necessárias para a equalização de condições sociais e econômicas no país.

Outro dia mesmo, conversando com uma das vizinhas, ela reclamou dos serviços de tratamento de água e esgoto da cidade. Segundo ela, isso se devia principalmente às pessoas sem instrução e capacitação que assumiram alguns dos empregos após o fim do apartheid. "Eu sei que a culpa é nossa (brancos), por não ter dado instrução correta para eles (negros, indianos e coloureds) por muito tempo, mas eles também não se esforçam para aprender e merecer o lugar que conquistaram agora. E ficam aí, tomando o emprego de gente muito melhor capacitada", confidenciou.

No entanto, como aponta Domingo no livro, "alguns negros sul africanos se beneficiaram das mudanças políticas e conquistaram empregos que antes não estavam disponíveis para eles. A maioria da população negra, entretanto, continua tentando alcançar seus conterrâneos brancos"³. Segundo ele, esse é um desafio para os próximos governos, já que a divisão do país em parâmetros muito diferentes ainda é uma realidade que vai levar tempo para ser sanada. É o que mostra o nosso exemplo brasileiro.



¹ ² ³ Trechos retirados do livro DOMINGO, Vernon. Modern World Nations: South Africa. EUA: 2004, by Chelsea House Publishers, a subsidiary of Haights Cross Communications. Com tradução de Denise Teixeira

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Entendimento por necessidade

Três vezes por semana, quando abro a porta da varanda de casa, encontro um sorriso tímido do outro lado do muro de tijolos vazados, na casa da vizinha, varrendo a varanda. É a senhora que trabalha para ela, uma negra já de idade, na casa dos 60 anos, vestida ainda conservando alguns traços da imagem típica que eu tenho das mulheres africanas: uma saia comprida e um lenço colorido amarrado na cabeça.


Sempre cumprimento com um "good morning" (bom dia) e pergunto "how are you?" (como está você?). Em resposta, recebo somente um "good morning" sussurrado. Depois, ela abaixa a cabeça e, invariavelmente, volta para dentro da casa da vizinha. Só retorna a seu trabalho na varanda depois que eu também já entrei para dentro de casa.


Para mim, a imagem típica da mulher africana é assim: saia comprida e lenço colorido na cabeça.
Por aqui é comum ver muitas delas vestidas assim.

Sempre fiquei intrigada. Será que ela é muito tímida ou será que não foi muito com a minha cara? Outro dia, conversando com a vizinha, comentei o fato. Disse que a senhora que trabalhava para ela não gostava de conversar comigo. Foi então que descobri que não era nada disso. Não é que ela não gostasse de conversar comigo, é que ela não conseguia conversar comigo. Explico: pertencente ao grupo dos zulus e tendo sempre trabalhado em casas de senhoras afrikaners (só para a vizinha ela já trabalha há 15 anos), essas eram as duas línguas que ela sabia falar - zulu e afrikans. Inglês, muito pouco, contou-me a vizinha.

Durante a época do apartheid, o inglês não era tão utilizado no país, e o governo, controlado pelo Partido Nacional, de maioria afrikaner, tentava impor o afrikans como língua nacional. Além disso, os negros só eram admitidos nas cidades para trabalhar nos negócios e nas casas dos brancos. Por isso, é muito comum hoje ver jardineiros e faxineiras negros falando afrikans. Para conseguir se entender com os patrões, esse foi o idioma que tiveram que aprender.

Minha irmã passou por uma experiência parecida. Quando se mudou para cá, a empresa em que meu cunhado trabalha arrumou uma senhora para ajudar a limpar a casa dela. O problema foi a comunicação, já que minha irmã falava só um pouco de inglês e a senhora, menos ainda. O entendimento entre as duas muitas vezes dependia dos gestos e sorrisos. E hoje mesmo tive um outro exemplo disso. A empresa arrumou um jardineiro (negro) para vir olhar o jardim de casa. Junto com ele veio um senhor branco, para olhar e avaliar o trabalho necessário. Entre eles, conversavam em afrikans. Foi então que expliquei, em inglês, que o jardim precisava de cuidados principalmente por causa de uma praga que tinha se espalhado. O senhor branco assentiu, e só então explicou - ou melhor, traduziu - ao jardineiro, em afrikans, o que eu tinha falado. Assim, conseguimos nos entender. Já sem a presença do senhor afrikaner, aí seria preciso recorrer a um outro tipo de língua, essa praticamente universal: a expressão corporal.

sábado, 2 de outubro de 2010

O outro lado do mesmo lado

Antes de vir para a África do Sul, um colega - que sabia sobre o tema desse meu trabalho - me enviou um vídeo de uma escritora nigeriana, que ele disse que poderia ser útil. O material é a gravação de uma palestra na qual essa escritora, Chimamanda Adichie, alerta as pessoas sobre os perigos da "single history", a típica versão de um só lado de uma história. Segundo ela, muitos estereótipos sobre o continente africano se perpetuam por causa de uma visão cristalizada, que fala da África como um lugar pobre, com pessoas morrendo de AIDS e fome, com costumes tribais e atrasados - muito aquém da globalização.




Mesmo alertada sobre esses perigos, de enxergar uma só versão das coisas, aqui me vi facilmente cometendo esse erro. Outro dia, conversando com minha irmã, ela me chamou atenção para o fato. "Você precisa tomar cuidado, porque do jeito que está contando as coisas, às vezes parece que todos os afrikaners e brancos (sul africanos) são racistas ou concordam com o que alguns poucos deles falam", ela me disse. É verdade. Convivendo praticamente só com pessoas brancas, muitas delas mais velhas, a maioria descendente de afrikaners e procurando por todos os lados enxergar resquícios do apartheid, acabo muitas vezes descrevendo somente momentos mais marcantes, de um preconceito ainda muito visível.

Mas não é sempre assim. Há, felizmente, muitas pessoas que não concordam com a persistência dessa discriminação, e outras que nunca concordaram. Por isso achei melhor me retratar enquanto ainda é tempo, e contar o outro lado da história desse mesmo lado que venho mostrando.

Algumas semanas atrás fui visitar uma escola que fica aqui no bairro onde moro e fui recebida por uma das coordenadoras, uma senhora afrikaner de idade e muito simpática, com quase a mesma dificuldade do que eu para falar em inglês. Conversamos muito, com ela me explicando as mudanças pelas quais a escola, que durante o apartheid era só para brancos, passou desde 1994 - mas que é assunto para outro post . Em certo momento, ela me contou a sua opinião acerca do assunto. Nascida em pleno regime de segregação, desde pequena, ela me disse, nunca entendeu o porquê do apartheid. "Eu nasci e cresci durante o regime, e sempre fui contra a ideia propagada por ele. Infelizmente, essa é uma coisa que muitas pessoas não sabem. Elas acham que todos que falam afrikans eram a favor do apartheid, mas a maioria dos afrikaners não são realmente racistas", explicou-me.

Minha irmã também me contou que seu chefe, na casa dos 30 anos, disse a ela que a impressão de que todos os brancos apoiavam o regime de segregação vem do fato de que muitos deles não tinham informações sobre o que acontecia no país. Segundo ele, muitos dos brancos não se manifestavam contra o regime não porque concordassem com o que estava acontecendo, mas por ignorância, por não saberem o que estava realmente se passando. Com a imprensa controlada e censurada pelo governo, era difícil para os brancos, que viviam em uma espécie de mundo separado - só com outros brancos - saber o que acontecia fora da "bolha" em que estavam. Os protestos e a violência contra outros grupos raciais ficavam restritos às townships ou territórios dos negros, e raramente vinham a público, assim como no já comentado caso de Donald Woods e Steven Biko.

Além disso, acredito que esse preconceito é uma dificuldade das pessoas mais velhas, que cresceram sob um discurso racista muito forte, de se adaptar aos novos tempos, e que isso tem grandes chances de mudar nas futuras gerações. Um exemplo é um dos jornalistas que conheci aqui. Com 20 anos de idade, ele me disse que era muito novo quando o regime acabou, e que tem poucas lembranças daquela época, mas que tem uma opinião muito diferente das gerações passadas. "Eu não acredito nisso, de julgar as pessoas pela "cara" delas. Eu gosto ou não de alguém pela sua personalidade. Mas eu não acredito que todo mundo pensa como eu. Eu tenho amigos negros, mas eu não posso leva-los à minha casa porque algumas pessoas da minha família, como a minha avó, não iam entender. Acho que ia ser desconfortável para ambas as partes", contou ele. E acrescentou: " Lógico que o caminho não é negar o que aconteceu, mas as pessoas deviam somente seguir em frente para construir um futuro diferente".

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quer que eu desenhe?




No banheiro de um posto no caminho entre Newcastle e Johannesburgo, até mesmo simples placas com instruções têm explicações em três diferentes idiomas, além dos desenhos. Na África do Sul, o entendimento entre as pessoas muitas vezes está condicionado à diversidade de línguas.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Flashes de um braai afrikans

Para os meus vizinhos afrikaners aqui de Newcastle, um dos programas tradicionais de sábado ou domingo é o braai, o churrasco que geralmente vem acompanhado da linguiça, também tradicional, daqui, a boerewors. Isso mesmo: o nome vem dos boêres, os tradicionais fazendeiros descendentes de holandeses.

Em um dos fins de semana de sol na cidade, fomos convidados para um desses braais feito pela vizinha de casa. Sentados na varanda, tomando uma Castle (uma das cervejas locais) e comendo a boerewors temperada na maneira deles (passa-se no limão e em um temperinho de ervas), tudo como manda o figurino, conheci um outro casal de vizinhos, que estava acompanhado de sua neta mais nova.

Conversando com a vizinha, ela me contou que a netinha tinha entrado na escola do bairro, a Huttenpark Primary School, esse ano. Toda orgulhosa, disse que a menina falava bem o inglês e o afrikans, idiomas que estava aprendendo na escola. E acrescentou, indignada: "E ela está sendo obrigada a aprender também zulu". Tentei argumentar que aprender o idioma poderia ser importante para ela se comunicar bem com outras pessoas do país. Recebi a típica resposta racista disfarçada: "Não é que eu não goste dela aprender a língua 'deles', mas é que isso vai confundir a cabeça da menina, com esse tanto de idiomas".

Continuamos a conversa, em que eu mais ouvia do que falava, e ela, mais uma vez orgulhosa, contando sobre as belezas do país, disse que os filhos tinham vontade de mudar da África do Sul e passear em outros lugares. Ela, entretanto, preferia ficar aqui, mesmo que fosse "perigoso". "Não me importo se, para cada um de 'nós' (afrikaners e brancos), existem doze 'deles'. Esse é o meu país e as minhas raízes estão aqui". Dessa vez, achei melhor nem argumentar que é, também, o país 'deles', embora por muito tempo não tenha sido.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A mídia e a questão racial - Parte 2

A rede televisiva nacional SABC


Como já demonstrado pelo exemplo do Newcastle Advertiser, no âmbito local a questão dos idiomas é um problema para as publicações midiáticas na África do Sul. Quando se expande o problema para a mídia nacional, as coisas se complicam ainda mais. É por isso que a South Africa Broadcaster Corporation (SABC), a rede pública nacional de televisão e rádio do país, adotou uma estratégia de integração da diversidade cultural. Segundo o site da própria emissora, a SABC "é um organismo de radiodifusão pública estabelecida em 1936 com a fusão de três emissoras de rádio, formadas no início dos anos 1920. O principal negócio da SABC é oferecer uma variedade de programas e serviços de qualidade através da televisão e do rádio (...) para o público em geral." O público em geral, nesse caso, envolve o dilema das várias línguas e culturas nacionais.


Acima a primeira transmissão televisiva oficial na África do Sul

A emissora, que surgiu numa época de ebulição dos ódios inter raciais e que sobreviveu aos anos do apartheid, mudou muito sua programação. Os principais objetivos proclamados no site da SABC, atualmente, são um espelho da preocupação em não repetir erros do passado, quando o regime do apartheid promovia não só o racismo, mas apenas uma versão das histórias do país e limitava a participação política das pessoas. Tudo isso era largamente sustentado pela mídia. Assim, a emissora define como seus principais objetivos: "Promover a democracia, o não-racismo, a construção da nação, e a capacitação (...) em todas as línguas oficiais". Além disso, também quer assegurar que os conteúdos da SABC contem "a história Sul Africana e Africana com precisão, imparcialidade e de forma equilibrada para todos os sul-africanos".

Os idiomas na TV aberta

Para cumprir seu papel, a rede possui três canais abertos de TV, sendo cada um voltado para a programação em línguas específicas. O canal SABC 1 contempla o inglês, o isiZulu, o isiXhosa, o Sindebele e o Siswati; já o SABC2 tem transmissões nos idiomas inglês, Afrikans, Sesotho, Setswana, Sepedi, Xitsonga e Tshivenda. O SABC3, de programação mais comercial, transmite apenas em inglês, a língua oficial do mundo empresarial sul africano.

Grande parte da programação da SABC é em inglês e os programas em outras línguas contam com legendas. No caso dos jornais diários, entretanto, a emissora optou por fazer cinco versões, sendo duas em um canal e outras três em outro, cada uma contemplando uma ou mais línguas e nenhuma delas contendo legendas. Assim, diariamente o SABC1 transmite uma edição do jornal em SiSwati e Ndebele, e uma outra edição em isiZulu e em isiXhosa. O SABC2 transmite uma edição em TshiVenda e XiTsonga, outra em Afrikans e uma última em Sesotho, Sepedi e Setswana. Já o SABC3 transmite diversos boletins durante o dia, todos em inglês. A maioria das notícias contidas em cada versão dos jornais é praticamente igual, e as fontes entrevistadas para as matérias em comum falam inglês.

Imagem de uma das edições do jornal da SABC1
Foto tirada desse link




Video de uma edição do jornal em afrikans no SABC2 




Uma das edições do jornal em inglês no SABC3


Além da aparência física do apresentador - ou seja, a cor da pele, entre outras características -, a única outra parte que me pareceu bem diferente nos jornais em Afrikans numa comparação com os de outras línguas, foi a de esportes. No dia em que acompanhei toda a programação de jornais dos dois canais - SABC 1 e 2 -, por exemplo, todos os noticiários nas línguas "negras" continham notícias sobre os Bafana Bafana (a seleção nacional de futebol), que ia jogar no dia seguinte contra a seleção de Angola. Já no jornal em afrikans, nada foi dito sobre o jogo e as notícias mostravam os Springboks (seleção nacional de rugby) e os times locais, que estão disputando o campeonato nacional da ABSA Currie Cup, além de resultados de jogos de críquete. Provavelmente as notícias seguem os interesses dos telespectadores de cada idioma, o que, entretanto, não deixa de demonstrar as divisões de um país ainda fragmentado.

Identidade nacional

Uma das principais políticas da SABC, que além da rede de televisões mantém 20 canais de rádio no país, é contribuir para o fortalecimento da identidade nacional no país. Ao ler uma dissertação de mestrado publicada por uma estudante da Faculdade de Humanidades da Universidade de Johannesburgo, tive oportunidade de saber como as pessoas da própria SABC enxergavam o papel da emissora na construção desta identidade. Para um país por muito tempo segregado, sendo que cada grupo racial tinha uma percepção de si mesmo - e não se entendiam como sul africanos, mas como afrikans, zulus ou xhosas- , a construção de uma identidade comum revela-se um desafio.

De acordo com a pesquisa realizada pela estudante todos os empregados da SABC entrevistados concordavam que era importante contribuir para a propagação da identidade nacional, embora a maioria não soubesse dizer o que seria essa identidade ou quais seus traços principais. Além disso, foi constatado que, para muitos, o uso de diversas línguas, bem como a política da rede de exibir uma certa porcentagem de programas locais produzidos no país, era uma faca de dois gumes. Segundo a autora da tese, Kurai Masenyama, muitos dos entrevistados para o trabalho diziam que mostrar as várias culturas locais contribuiria para que todos os sul africanos entendessem que aquela diversidade era constituinte de uma única cultura nacional, da qual todos faziam parte. Esses entrevistados enxergavam a exibição da variedade como uma oportunidade para as pessoas conhecerem e se sentirem integrantes de outros aspectos da vida no país.

Por outro lado, algumas pessoas diziam que mostrar as diferenças apenas contribuiria para reforçar que elas existem. Antes de se sentir parte daquelas culturas que lhes eram estranhas, as pessoas provavelmente as iriam rejeitar e fariam questão de se diferenciar delas, demarcando sua identidade grupal. Além disso, muitos acreditavam que a definição de uma única língua, o inglês, como idioma oficial contribuiria grandemente para a formação de uma identidade nacional.

A eterna dúvida entre unir através da língua ou respeitar e difundir a diversidade como a marca da identidade nacional parece ser uma preocupação que constantemente ronda a mídia. No caso da SABC, entretanto, outra questão parece ser ainda mais importante. Muitos dos grupos do país foram privados por muito tempo do acesso à tecnologia e à mídia e, até 2004, cerca de 85% do território sul africano ainda não tinha sinal de televisão¹. Desse jeito, como atingir todas as pessoas e conseguir falar em identidade nacional com tão baixo alcance? Esse número é mais uma das heranças da desigualdade promovida pelo apartheid, que ainda contribui para a existência de duas - ou tantas outras - Áfricas do Sul, com padrões de vida ainda muito diferentes.



¹ Dado retirado do livro DOMINGO, Vernon. Modern World Nations: South Africa. EUA: 2004, by Chelsea House Publishers, a subsidiary of Haights Cross Communications.