sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Além do preto e branco

O regime do apartheid significou uma divisão do território sul africano que foi além da distinção entre negros e brancos, envolvendo também os imigrantes indianos


Antes de vir para a África do Sul, sempre imaginei o apartheid como um regime de segregação entre negros e brancos, e de opressão dos últimos sobre os primeiros. Quando cheguei aqui, entretanto, descobri que o racismo pregado por esse sistema político foi muito além dessa simples divisão.

Há cerca de 150 anos, imigrantes da Índia foram atraídos para o país, muitos buscando "melhorar de vida" com a descoberta de riquezas minerais, como ouro e diamante. A maioria, no entanto, veio para trabalhar nas plantações de cana de açúcar. Quando chegaram aqui, o que vivenciaram, ao invés de prosperidade, foi a discriminação.


Indianos chegando pela primeira vez a Durban, África do Sul
Foto tirada desse link

Durante o período do apartheid, assim como os negros e os coloureds, os imigrantes indianos - e asiáticos no geral - também foram obrigados a portar passes e a viver em lugares separados. Como me contou Jane, a secretária indiana do escritório em que minha irmã trabalha, "é por isso que hoje moro longe, no 'bairro dos indianos'. Durante o regime, éramos obrigados a morar fora da cidade. Se nos descobrissem andando pelas ruas do centro sem permissão, éramos presos".

Segundo ela, diversos espaços públicos e privados não podiam ser frequentados pelos indianos, como restaurantes, salões de beleza, bibliotecas, hospitais, hotéis, escolas, entre outros. "Como éramos proibidos de estudar nas escolas daqui, começamos a criar as nossas próprias, além de passar a morar em uma área onde pudessemos conviver", disse-me. Um exemplo dessas iniciativas foi a Universidade de Durban-Westville, criada em 1970 e que hoje faz parte da Universidade de Kwazulu-Natal. A instituição foi construída com apoio financeiro dos indianos sul africanos para que seus filhos pudessem fazer curso superior. Até então, para conseguir esse tipo de formação, era preciso ir até Salisbury Island, uma prisão abandonada que servia como universidade.


Atualmente a Universidade de Durban-Westville faz parte da
Universidade de Kwazulu-Natal, e é aberta a todos
Foto tirada desse link


Os indianos também tiveram um papel importante na militância contra o apartheid. "Até mesmo (Mohandas) Gandhi veio à África do Sul. E é curioso que, em uma de suas viagens no país, expulsaram ele do trem porque indianos e negros não podiam andar na primeira classe e ele se recusou a ir para a terceira classe. Mesmo assim, Gandhi ficou um bom tempo por aqui, tentando ajudar as pessoas a se fortalecer e construir um novo lar dentro do regime de segregação", explicou Jane. Por isso, devido aos 20 anos de militância do pacifista indiano em solo sul africano, alguns costumes originários da Índia foram mantidos, como o uso do "terceiro olho", que Jane ostenta com orgulho, explicando que é um símbolo de que ela é casada.

Mesmo acreditando que muita coisa mudou após o fim do regime, Jane disse que algumas pessoas mais velhas ainda têm uma certa dificuldade em lidar com os novos tempos. "Acho que depende de cada um assumir uma postura e ir atrás do que quer. Assim como eu, que estou trabalhando. Também matriculei meu filho em uma escola que é de maioria branca, porque a qualidade do ensino é melhor e eu quero que ele conviva com pessoas diferentes", apontou ela.


Uma noiva sul africana descendente de indianos, já com o terceiro olho
Foto tirada desse link

No entanto, mesmo que as coisas estejam melhores agora e os indianos tenham recuperado o direito de ir e vir, Jane acredita que eles continuam levando desvantagem. Ela contou que os descendentes de imigrantes da Índia sempre apoiaram a ANC em sua luta contra o regime. Por isso, quando aconteceram as primeiras eleições democráticas, havia filas de pessoas indo votar cheias de esperança.

"Depois de 1994, o que vivenciamos foi uma inversão do regime, com os negros assumindo o poder. No entanto, ainda que eles estejam lutando para melhorar a qualidade de vida deles, através de iniciativas como o BEE, os indianos foram esquecidos", desabafa. Isso acontece, segundo ela, porque os indianos, por terem uma cultura própria, muitas vezes não são enxergados como sul africanos. "Mas eu sou sul africana. Eu nasci aqui e nunca nem mesmo visitei a Índia. E até alguns costumes de lá eu não sigo", contou-me, mostrando o cabelo curto que deveria ser comprido e contando do marido, com quem ela não poderia se casar na Índia.

Enquanto almoçávamos juntas aqui em casa, Jane fez uma constatação simples, mas que realmente me fez ver como as coisas eram na época, e o quanto há de esperança pelas mudanças que estão acontecendo: "Naquela época, eu não poderia estar aqui conversando e comendo com vocês. Eu nem mesmo poderia trabalhar com a Debora (minha irmã)".

2 comentários:

Laura Barreto disse...

Seus textos são fortes, bem redigidos e muito esclarecedores. Acho que não existe melhor forma de aprender, ensinar e, o mais importante, divulgar e registrar essa triste história de opressão (que ainda não acabou) para que não se repita.

Denise disse...

Obrigada, Laura! A minha intenção -não sei é muita pretensão - é justamente tentar mostrar para as pessoas um pouco da história desse país, que eu acredito que esteja se modificando a cada dia, mas que ainda tem um longo caminho pela frente!Aliás, acho que o papel do jornalismo deveria ser esse: retratar e ajudar a mobilizar as pessoas ao redor de uma causa. Quer seja ela a vontade de não deixar coisas assim acontecerem novamente ou mesmo começar a mudar algumas concepções preconceituosas.