terça-feira, 12 de outubro de 2010

Aprendendo a mudar

As escolas assumem importante papel ao ensinar as crianças sobre os acontecimentos do passado e ao promover a união multi-racial para o futuro

Quando era criança, todos os dias Eric Dlomo, um menino negro que vivia em uma área rural da África do Sul, tinha que andar dez quilômetros para ir para a escola, e outros dez para voltar. Fizesse chuva ou sol, se ele quisesse estudar, essa era a única opção. E foi isso que ele fez, durante seis anos, para conseguir se formar. Hoje, vice-diretor de uma escola municipal em Newcastle e já na casa dos 40 anos, sentado em seu escritório, Dlomo me contou que muita coisa mudou desde o fim do apartheid.

Criado na vila de Nkandla - a mesma em que nasceu Jacob Zuma, o atual presidente do país -, Dlomo disse que as condições de estudo para os negros eram muito precárias naquela época: "Eu, por exemplo, fiz a minha 8 ª série debaixo das árvores, já que não havia salas disponíveis para nós no prédio da igreja que era usado como escola. E nós estudamos ali, a céu aberto, durante cerca de um ano e meio".


Eric Dlomo em seu escritório na Hope High School

Segundo Dlomo, todos seus professores eram negros também e, apesar de supostamente ter que ensinar os alunos em inglês, muitos deles não estavam capacitados para isso. "As aulas deveriam ser em inglês, mas os próprios professores não estavam preparados. Eles estavam lutando contra as novas línguas. Assim, usávamos ambos: zulu e inglês", explicou-me.

Somente quando chegou à faculdade, logo após o fim do regime de segregação racial, Dlomo vivenciou a experiência de conviver com colegas de sala brancos. Ele conta que aquele contato, entretanto, não pode ser descrito como uma forma de superação das diferenças. "Ainda existia muita tensão, porque era muito recente a introdução do sistema multi-racial nas universidades. E esse sistema existia apenas teoricamente, já que na prática tudo continuava separado. Nas salas de jantar, por exemplo, os negros continuavam sentando com os negros, e os brancos com os brancos", relatou ele.

A ampliação do ensino na Huttenpark School Primary School

Hoje, as coisas parecem finalmente estar mudando. Pelo menos é o que demonstra o exemplo da Huttenpark Primary School, a escola primária do bairro em que moro aqui em Newcastle. Durante os anos do apartheid, a escola era destinada somente para alunos brancos, mas desde 1995 abriu suas portas e hoje atende a várias crianças negras. A primeira vez que fui até lá, fiquei encantanda com a convivência entre meninos e meninas de várias raças, brincando juntos no parquinho colorido da escola, com seus uniformes laranja e vermelhos.

Segundo a coordenadora da escola que me recebeu, Anetjie Hay, uma senhora afrikaner que é professora desde 1968, a resistência ao sistema multi-racial de ensino se restringiu aos primeiros anos de mudança. "No começo, um ou dois anos depois que nós abrimos as nossas portas a todas as pessoas, as crianças estranharam um pouco. Mas agora está tudo bem", disse ela. E acrescentou, tentando mostrar que o país está se esforçando para promover a união e a igualdade: "Aqui, as crianças brancas vão e brincam com as negras. E isso está acontecendo em todos os lugares, já que, se você olhar nos bancos, nas lojas, verá que nós todos usamos as mesmas coisas e as compramos dos mesmos lugares".


Uma das classes de inglês da Huttenpark School

As línguas ensinadas na Huttenpark School também mudaram. Enquanto durou o regime de segregação racial, os alunos eram obrigadas a aprender em afrikans. Atualmente, entretanto, a escola é bílingue, e ensina em afrikans e em inglês. "Cada série tem duas classes: uma com aulas em afrikans, e outra em inglês. E temos também uma terceira língua, obrigatória para todas as crianças desde a quarta série, que é o zulu", explicou-me Hay. Segundo ela, em outras províncias, o terceiro idioma adotado pelas escolas pode ser venda, ou tsonga, ou outra língua que é falada nessa área. "As escolas não são obrigadas a ter disciplinas dessas línguas, mas o governo nos oferece um professor extra se decidirmos ensiná-las. Nós optamos pelo zulu e temos uma professora que já está aqui há cinco anos", apontou Hay, que acredita que a medida ajuda a aproximar as pessoas.

No entanto, a coordenadora me mostrou que ainda é possível distinguir as classes de inglês das de afrikans por uma característica muito visível: a cor da pele dos alunos. "Olhe pela janela", ela me pediu. Obedeci e vi uma fila de crianças, negras e brancas, todas muito bem comportadas, esperando para entrar na sala de aula. "Essa é uma das classes de inglês, e você pode perceber isso porque também há crianças negras. A maioria dos pais negros, coloureds e indianos preferem matricular seus filhos nas classes de inglês. Atualmente, nós não temos nenhuma criança coloured ou negra nas classes de afrikans", desabafou. Para ela, entretanto, a questão é compreensível, já que durante os anos de apartheid o governo tentou impor o afrikans como língua oficial, para matar os outros idiomas nativos do país.

Outro aspecto que mudou na Huttenpark School foi o ensino de história. Na época do apartheid, as versões sobre o regime eram controladas. "A matéria ensinada mudou muito com a adoção de um novo currículo após 1995. No começo, alguns estudantes negros não se sentiam confortáveis, mas agora o assunto é ensinado de maneira neutra", contou Hay. De acordo com ela, a questão não é abordada com as crianças menores, mas as mais velhas aprendem esse pedaço da história da África do Sul da maneira correta. "Eles aprendem sobre Nelson Mandela e todas os outros personagens negros que foram importantes para o nosso país, como Steve Biko".

A mudança radical da Hope High School

Muitas das escolas brancas vivenciaram uma abertura para estudantes negros após o fim do apartheid, assim como a Huttenpark. Para uma delas, entretanto, a mudança significou uma reversão dos tempos de regime. A Hope High School, escola municipal de Newcastle, também era destinada somente para alunos brancos, mas com o fim da segregação racial formal, acabou virando uma escola só de negros. "Imediatamente após o fim do apartheid, os brancos foram tirados daqui pelos pais e hoje ela é puramente constituída de alunos negros", explicou Eric Dlomo, vice-diretor.

No entanto, a Hope High é uma das poucas da cidade a ter um quadro multi-racial de professores. "Dos 42 professores, 10 são negros, dois indianos e 30 são brancos", apontou Dlomo. Segundo ele, a mistura funciona como uma maneira de integrar realidades distintas. "Algumas vezes há uma tensão desnecessária, principalmente porque professores e alunos vêm de culturas diferentes, não só por causa da origem racial, mas também por causa da idade. Mas é interessante ver, no final do dia, as pessoas se entendendo, porque apesar de ter culturas diversas, eles têm o mesmo objetivo aqui na escola. É isso que faz uma criança perceber: 'eles têm interesse em mim. Então nós não somos inimigos, apesar de sermos culturalmente diferentes' ".


Prédio com as salas de aula da Hope High School

Outra medida de integração que a Hope High adotou foi ajudar a desenvolver e a formar estudantes a partir do uso do inglês. "Todas as aulas são ministradas em inglês. E nós temos aulas de zulu também, como segunda língua, já que é o idioma materno da região em que vivemos", contou-me Dlomo. E a medida tem efeito na integração e na formação cultural das crianças. Foi o que me contou uma das alunas da Hope High, chamada Mbali. "Em casa conversamos predominantemente em zulu, mas com os amigos falamos às vezes em zulu e às vezes em inglês. E às vezes misturamos inglês e zulu, formando o que chamamos de inglizulu", explicou-me.

Apesar de tudo, as diferenças

Apesar de buscar a integração racial e valorizar a participação dos negros no sistema educacional do país, Huttenpark e Hope High School têm uma diferença grande: os alunos das duas escolas, infelizmente, têm origens econômicas e sociais bem diversas.

Enquanto os estudantes da Huttenpark são estimulados a praticar atividades diversas, como artes, dramatização e diversos esportes - como rugby, críquete, natação, tênis e outros -, os da Hope High não contam com as mesmas oportunidades. "Não é que a escola não queira oferecer essas atividades extra, mas é porque vários dos alunos vêm de áreas distantes, e o meio de transporte que eles usam são os ônibus públicos", apontou Dlomo. Segundo ele, quando as aulas terminam, essas crianças têm que correr para pegar o ônibus e, caso a escola os retenha com outras atividades, eles não terão como voltar para casa: "Nesses casos, os pais teriam que pagar para eles usarem algum tipo de transporte privado. Então nós até chegamos a discutir a escolha de um dia para terminar a aula mais cedo e trazer as crianças para atividades extra-classe, mas a proposta não foi aprovada".


Piscina da Huttenpark School
Os alunos da escola praticam várias atividades extra-classe,
 já os da Hope High não têm o mesmo privilégio

Segundo o vice-diretor da Hope High, muitas dos alunos vêm de famílias com pais desempregados ou falecidos. "Então o que acontece é que essas crianças muitas vezes têm que assumir o papel desses pais e se tornam mais vulneráveis. E, assumindo as tarefas de cuidar de uma família, que tempo elas terão para fazer os deveres da escola e estudar?", desabafou ele.

É por causa dessas diferenças que, apesar de não ter aulas de história como a Huttenpark School, a Hope High tem uma matéria específica que remete aos tempos do apartheid. Chamada de Life Orientance (Orientação sobre a vida), a disciplina ajuda os alunos a enfrentar desafios e a se comportar diante das várias situações cotidianas, ensinando valores e técnicas de valorização. "Depois do regime, você podia encontrar gênios que não conseguiam se formar porque estavam se afundando em drogas e coisas assim. Então o governo determinou a criação dessa matéria, para ajudar os alunos a lidar com os problemas ao longo da vida", explicou o vice-diretor.

Um ponto em comum entre as duas escolas, entretanto, é que elas parecem mostrar que o país caminha para um futuro diferente. Tanto Hay quanto Dlomo disseram acreditar que as novas gerações pensam diferente das antigas. "As coisas estão mudando, mesmo que isso seja difícil para algumas pessoas. Do mesmo jeito que é difícil para as pessoas brancas de idade mudarem seu pensamento, para as pessoas negras mais velhas também é. Mas, para as crianças, isso é mais fácil", acredita Hay. E um dos casos que Dlomo me contou evidencia bem essa mudança: "Lembro de uma aluna que visitou nossa casa e fez um comentário muito bom: 'Queria que todos parassem de dividir e ver as pessoas como negras ou brancas. Eles deviam enxergar todos apenas como pessoas'. Para mim, aquilo soou poderoso, por causa da idade dela. Eu eu imaginei comigo mesmo: se não houvesse demarcação racial, que país a África do Sul poderia ser!"

Veja mais fotos das escolas na galeria do (vi)Vendo a África do Sul.

2 comentários:

Thais disse...

Nem ando aparecendo muito por aqui, né, Dê, Mas todos os textos que li gostei muito. Esse, especificamente, tá muito gostoso, leve, e mostra uma apuração bacana. Saudades demais!

Denise disse...

Que bom que gostou, Tatá!
Acho que a leveza do texto tem muito a ver com a leveza do ambiente das escolas. Na minha opinião, as crianças sempre têm um jeito mágico de tornar simples até as coisas mais complexas da vida, como é o caso da segregação racial por aqui.
Saudades também!
E obrigada por acompanhar o blog!