sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Até que a morte os separe (ainda mais)

A distribuição desigual de recursos, herança do apartheid, contribui para que os sul africanos tenham padrões muito diferentes de vida e de morte


Pouco tempo depois de escrever sobre a separação dos espaços físicos aqui em Newcastle, li em um livro uma informação muito interessante, que me remeteu ao assunto. Segundo o autor, Vernon Domingo, que é um professor sul africano e foi considerado como coloured durante o apartheid, um dos lugares em que essa separação física ainda é muito visível - e vai continuar sendo por várias gerações - são os cemitérios.

De acordo com Domingo, os locais onde as pessoas eram enterradas são marcas de segregação não apenas por causa da questão óbvia de que negros e brancos eram sepultados em espaços diferentes, com condições bem distintas de conservação. A marca maior a que ele se refere é a distância que existe entre as datas gravadas nos túmulos. Isso porque elas "indicam a grande diferença na expectativa de vida. Os sul africanos negros morriam, em média, 14 anos antes do que seus conterrâneos brancos"¹.



Na África do Sul, até mesmo cemitérios permanecem como marcas da segregação racial
dos tempos de apartheid
Foto tirada desse link


O autor conta que isso acontecia por diversos fatores, já que, desde o nascimento, brancos e negros vinham ao mundo em hospitais diferentes - principalmente pela qualidade. E essa distinção se prolongava pelo resto da vida: eles tinham condições de moradia, saúde e trabalho distintos, além de acesso desigual a informações e educação. Até mesmo a distribuição de recursos básicos para a vida humana, como a água, não era igual. Em muitas das townships as pessoas conviviam com esgoto a céu aberto e falta de água potável.

Mesmo após o fim do apartheid, essas desigualdades ainda são muito visíveis. Segundo Domingo, "uma típica garota negra de 14 anos em uma vila rural da África do Sul ainda tem muito menos acesso a condições adequadas de alimentação, casa, água e educação do que uma garota branca na cidade de Johannersburgo"².

Com a ascensão do novo governo, várias iniciativas econômicas e sociais vêm sendo pensadas para diminuir essa disparidade. Uma delas é o projeto Capacitação Econômica da Maioria Negra (ou Black Economic Empowerment - BEE), que procura aumentar a participação dos negros na economia do país. Uma das iniciativas do projeto é a política de cotas raciais para empregos. A medida é bem polêmica e, na minha opinião, contribui para suscitar ainda mais os ódios interraciais, apesar de ser uma das soluções necessárias para a equalização de condições sociais e econômicas no país.

Outro dia mesmo, conversando com uma das vizinhas, ela reclamou dos serviços de tratamento de água e esgoto da cidade. Segundo ela, isso se devia principalmente às pessoas sem instrução e capacitação que assumiram alguns dos empregos após o fim do apartheid. "Eu sei que a culpa é nossa (brancos), por não ter dado instrução correta para eles (negros, indianos e coloureds) por muito tempo, mas eles também não se esforçam para aprender e merecer o lugar que conquistaram agora. E ficam aí, tomando o emprego de gente muito melhor capacitada", confidenciou.

No entanto, como aponta Domingo no livro, "alguns negros sul africanos se beneficiaram das mudanças políticas e conquistaram empregos que antes não estavam disponíveis para eles. A maioria da população negra, entretanto, continua tentando alcançar seus conterrâneos brancos"³. Segundo ele, esse é um desafio para os próximos governos, já que a divisão do país em parâmetros muito diferentes ainda é uma realidade que vai levar tempo para ser sanada. É o que mostra o nosso exemplo brasileiro.



¹ ² ³ Trechos retirados do livro DOMINGO, Vernon. Modern World Nations: South Africa. EUA: 2004, by Chelsea House Publishers, a subsidiary of Haights Cross Communications. Com tradução de Denise Teixeira

2 comentários:

Laura Barreto disse...

Adoro seus textos. De uma forma clara, objetiva e com uma leitura fácil a cada novo "post" conheço um pouco mais sobre a África. O mundo todo deveria ler...
Parabéns.

Laura Barreto

Denise disse...

Obrigada, Laura! Fico muito feliz em saber que estou contribuindo para as pessoas saberem um pouquinho mais sobre a África do Sul, ainda que sob o meu ponto de vista. Tem muita coisa nesse país que vale a pena ser conhecida, principalmente em termos de cultura e história!