sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Vozes não mais em silêncio

Após o fim da censura imposta pelo regime do apartheid a música ajuda a protestar e preservar um pouco da cultura da África do Sul


Usar a música como forma de manifestação sempre foi um costume entre os negros sul africanos. Na época do apartheid as marchas de protesto contra o regime quase sempre eram acompanhadas por canções que expunham as condições precárias de vida dos não-brancos, enalteciam a ANC e faziam pedidos como "Free South Africa" (libertem a África do Sul). Essa forma de protesto, entretanto, era duramente reprimida, apesar de ainda hoje ser possível escutar a ressonância (nem sempre positiva) das vozes que as cantavam.

Atualmente, com o fim do regime, a indústria musical do país encontrou finalmente a liberdade de expressão e deu oportunidade ao desenvolvimento de muitos artistas locais. Foi em apoio a esses artistas que, em 1997, uma senhora chamada Zonti, que trabalhava na área cultural da municipalidade de Newcastle, teve a ideia de criar uma rádio em Madadeni.

A emissora foi finalmente inaugurada em 2004 e abriu as portas em Madadeni. Hoje, com o nome de Newcastle Comunity Radio Station, a emissora opera dentro do Black Rock Casino, em Newcastle. O cassino oferece o lugar e patrocina a rádio em eventos. "Resolvemos nos mudar para cá porque as oportunidades comerciais eram maiores e, assim, temos mais chances de manter no ar nossa rádio e seu conteúdo", explicou-me Madoda Mdakane, apresentador e operador de som.


A cantora Miriam Makeba, também conhecida como "Mama Afrika", usava
a música como forma de protesto contra o apartheid e acabou exilada por suas canções
Foto tirada desse link

A grade da Newcastle Comunity Radio é composta basicamente de músicas, notícias e programas culturais e educacionais. Cerca de 80% das transmissões é feita em zulu, 10% em afrikans e 10% em inglês. "Como somos uma rádio comunitária, tentamos valorizar as tradições locais, contando histórias sobre o povo zulu, além de transmitir conteúdo educacional para crianças em idade escolar", disse Madoda. Segundo ele, todo mês eles também têm um programa voltado para a prestação de contas à comunidade, além de acompanharem o progresso de reclamações dos ouvintes da rádio. "Tentamos cumprir o nosso papel de accountability", contou-me, todo orgulhoso, o apresentador.

Além disso, de acordo com Madoda, 30% da programação é de conteúdos locais, 50% nacional e 20% internacional. "Tentamos valorizar a cultura local, mas temos poucos artistas por aqui, apesar do incentivo a essa indústria estar crescendo no país", desabafou ele. Mesmo assim, por sua iniciativa de apoio à comunidade e aos artistas locais, a Newcastle Comunity Radio ganhou o prêmio "2010 South African Tradional Music" (SATMA).

Quando perguntei a Madoda sobre qual tipo de música era comum na região, ele me disse que os ritmos mais fortes são o gospel e o kwaito. Intrigada com esse último estilo, do qual nunca tinha ouvido falar, resolvi pesquisar sobre ele. Descobri que o kwaito, que Madoda classificou como "uma espécie de hip hop sul africano", tem realmente muito a ver com o hip hop.

Surgido nas periferias norte americanas e cantado sobretudo pelos negros, o hip hop é uma expressão das camadas sociais mais desfavorecidas e expõe a cultura e os problemas enfrentados por eles. No caso do kwaito, a música tem uma forte ligação com o apartheid, pois floreceu justamente no período após o fim do regime, como uma forma de protesto dos moradores das townships contra as precárias condições de vida que tinham. Até mesmo o nome kwaito remete a um contexto político, pois é derivado da palavra afrikans kwaai, que significa zangado.


Atualmente, os temas das canções foram ficando mais apolíticos, mas ainda assim servem como uma forte expressão da cultura das "favelas" sul africanas. Além disso, o kwaito tem uma vantagem em relação às tradicionais canções de manifestação da época do apartheid: o estilo musical vem ganhando expressão não somente nacional, mas também internacional, na voz de artistas como Arthur Mafokate e Zola. Assim, o mundo pode finalmente ouvir as vozes sul africanas.

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