quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A oportunidade de mudar

Quando se tornou presidente da África do Sul, Nelson Mandela teve que encarar um grande desafio: não deixar que o país passasse a viver um apartheid às avessas. Os ódios interraciais provocados pela opressão dos negros pelos brancos durante o regime de segregação pareciam conduzir a uma necessidade de vingança dos primeiros sobre os últimos. No entanto, Mandela conseguiu, em parte, driblar essa tensão e transformar o país em um território pacífico.


Ainda assim, a lembrança do que sofreram ainda faz muitos negros se revoltarem com essa convivência com os brancos (e vice-e-versa), principalmente porque esses ainda detém melhores condições de vida. Muitos se indignam com a posição de submissão que o regime lhes impôs, mas acredito que tanto a indignação quanto a desigualdade são condições que vêm mudando.

Depois de vivenciar o cotidiano de Newcastle por quase três meses, sobrou-me a alegre impressão de que as novas gerações estão dando uma nova cara à África do Sul e conseguindo viver uma vida mais livre de preconceitos. Outro dia fui apresentada à personificação dessa minha esperança: uma jovem estudante de arquitetura chamada Poome. Já falei um pouco sobre ela aqui, mas volto a contar um outro lado de sua história.

Colega de trabalho da minha irmã em um escritório de arquitetura aqui da cidade, Poome é descendente de zulus. Além da língua materna, ela fala inglês, xhosa, um pouco de afrikans e cerca de cinco línguas indianas, que aprendeu por ter estudado em uma escola de descendentes de imigrantes da Índia durante o apartheid.

Após ter estudado em lugares destinados a não-brancos durante a vida toda, em 1994, assim que o regime acabou completamente, Poome foi matriculada em uma escola que antes era somente para brancos. "Minha mãe queria que eu tivesse um ensino de qualidade, por isso assim que teve oportunidade me fez mudar para essa escola. No começo foi difícil a adaptação aos novos tempos. Até mesmo os professores ficavam um pouco desconfiados por ver um aluno negro ter melhor desempenho do que um branco, por exemplo", contou-me.

Cursar a Universidade de Durban foi um novo desafio. "As classes já eram mistas e eu tive vários colegas e amigos brancos, mas era engraçado ver como negros e brancos ainda sentavam separados na sala de aula", descreve Poome. Segundo ela, um fato muito curioso era um amigo descendente de afrikaners, mas que falava zulu fluentemente, como primeira língua. "Ele cresceu cercado por empregados e babás zulus e, como criança não tem maldade, essa foi a língua que ele aprendeu desde cedo", disse.

Segundo ela, o complicado era para as crianças negras, que muitas vezes acompanhavam suas mães ao trabalho. "Na nossa tradição zulu, os mais jovens devem sempre respeito e admiração aos mais velhos. Por isso era complicado para nós, crianças negras, entender porque nossas mães eram maltratadas e muitas vezes até apanhavam de pessoas brancas bem mais jovens do que elas, muitas vezes crianças como nós. Não entendíamos porque elas se sujeitavam àquilo", desabafou.

Hoje, Poome se orgulha de estar concluindo os estudos e de ter conseguido o trabalho no escritório de Newcastle. "Muitas pessoas ficam admiradas e me parabenizam por ser uma mulher negra e arquiteta", conta, dizendo que na África do Sul a maioria dos arquitetos são homens. No entanto, nem sempre as escolhas dela foram bem vistas. "Tenho muitos tios que ficaram indignados ao saber que no trabalho aqui no escritório eu teria chefes brancos, afrikaners. Eles perguntavam: 'você vai deixar eles mandarem em você?' e se indignavam ao saber que eles conversvam em afrikans na minha frente", conta. Poome, entretanto, diz que sempre foi super bem recebida e tratada no trabalho, e que aprendeu muito por lá. "Acho que a questão é saber valorizar as oportunidades, pois só assim vamos conseguir mudar as coisas".

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