segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Poder em xeque

Os conflitos pelo poder na África do Sul vão muito além da disputa entre negros e brancos, como já dito aqui sobre a Guerra dos Boêres e a permanência da tensão entre descendentes de ingleses e afrikaners. Entre as tribos negras também houve sempre luta para assumir o controle do país. Por alguns dos relatos que ouvi durante minha estadia, essa luta continua até hoje.

O filme The Power of One mostra como mesmo passando por uma situação degradante e comum durante o regime de segregação racial, descendentes de diferentes tribos negras, como os zulus, os xhosas, os sothos, entre outros, ainda discordavam e brigavam entre si.

É por isso que na trama o personagem negro Piet chama PK, branco descendente de ingleses, de RainMaker ("fazedor de chuva"). O título tem origem em um mito que se perpetuava entre as tribos na África do Sul. Segundo ele, quando havia muita tensão entre os povos africanos, era a chuva que vinha abaixar a poeira e acalmar as coisas. No filme, PK aprende a falar os idiomas das várias tribos e ajuda a todas, inclusive buscando maneiras de os unir em torno de objetivos comuns.

Representantes da tribo Xhosa, da qual Nelson Mandela era descendente
Foto tirada desse link


Na realidade, a disputa remonta a tempos anteriores à chegada dos colonizadores. Durante os tempos do apartheid, a disputa se acalmou, com a criação das homelands e com cada tribo assumindo sua "nacionalidade". Além disso, todos travavam uma luta em comum contra o regime. Com a proximidade das eleições de 1994, no entanto, as disputas se agravaram.

A colega arquiteta da minha irmã, Poome, é descendente de zulus e, embora não siga muitas das tradições de seu povo, sabe um bocado da história dele para contar. Segundo ela, uma das lembranças mais antigas que tem é datada próxima ao ano da eleição de Nelson Mandela. Os dois partidos negros que lutavam contra o apartheid, o Congresso Nacional Africano (ANC) e o Congresso Pan-Africano (CPA), começaram a disputar entre si para assumir o controle do país. "Lembro da minha mãe nos levar escondidos para a casa dos meus avós, que era no campo, porque no local onde morávamos os dois partidos começaram uma guerra. Ouvíamos tiros por todos os lados. Se um integrante da ANC chegasse à sua casa e você tivesse um carteira do CPA, eles queimavam sua casa e matavam sua família. E vice-e-versa".

Hoje os negros se orgulham e se enchem de esperança por terem assumido o controle do governo do país, condição essa que acredito ser difícil de mudar, já que a população negra é maioria no país, o que se reflete nas urnas. No entanto, mesmo tendo como objetivo comum reverter a desigualdade imensa que foi gerada pelos tempos do regime de segregação racial, as tensões continuam.


O atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, usando seus trajes zulus
durante um de seus quatro casamentos
Foto tirada desse link


"As pessoas não se preocupam se o novo presidente é uma boa pessoa, correta. Eles não se importam com quem está governando o país, desde que seja da tribo deles. Assim, quando Nelson Mandela assumiu, os xhosas, sua tribo, ficaram todos orgulhosos. Agora, com Jacob Zuma no poder, são so zulus que se vangloriam", contou-me Tiner, um vizinho afrikaner que nunca se sentiu satisfeito com o novo modo de governar o país. Segundo ele, essa instabilidade e a tensão não são exclusividade da disputa entre negros e brancos. "Eles (negros) não procuram ajudar uns aos outros. Estão somente preocupados com seu próprio povo", afirma.

No entanto, ter conseguido unir todas as tribos em um único território nacional, evitando conflitos armados, parece ter sido o maior triunfo da África do Sul e do ex-presidente Mandela. Ainda que seja uma convivência separada, pode-se dizer que é pacífica, mesmo sem agradar a todos. Mandela bem que merecia o título de RainMaker. Agora, como será o país após sua morte, é uma pergunta que ainda espera por ser respondida.

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