sábado, 18 de setembro de 2010

A mídia e a questão racial - Parte 1

A experiência do Newcastle Advertiser, jornal impresso local


Capa do Newcastle Advertiser do dia 17 de setembro
"A única regra simples que nós temos é não mencionar a raça de uma pessoa em uma notícia, a menos que seja necessário. Por exemplo, não podemos dizer: um negro foi preso por estuprar uma mulher branca em sua casa na tarde de sexta feira passada. Alguns anos atrás isso era aceitável", explicou-me Tanya dos Santos, a editora do Newcastle Advertiser, o jornal impresso de maior circulação na cidade. Além disso, o jornal tem apenas outra política acerca da questão racial, que descobri rodando com os jornalistas da publicação. Fomos para as ruas fazer um povo-fala (cuja definição você encontra aqui) e Bruce Douglas, um dos jornalistas, disse que o Advertiser exigia que, das cinco pessoas entrevistadas - cujas opiniões e fotos seriam publicadas na seção -, duas fossem brancas, duas negras e uma indiana - ou duas indianas e uma negra.

De acordo com Tanya, a exigência não é uma recomendação do governo ou algo assim. É apenas uma maneira de evitar problemas e reclamações para o jornal. "Nós somos chamados de racistas se colocamos muitas pessoas brancas no jornal. Nós somos chamados de racistas se cobrimos uma história na qual pessoas brancas são afetadas", explicou a editora do Advertiser. Segundo ela, o apartheid continua sendo uma questão sensível para muitos. "Enquanto os brancos acham que os negros continuam usando o 'cartão do apartheid', reclamando que tudo que acontece com eles é racismo, os negros acham que eles ainda estão sob o regime do apartheid. O regime acabou há muitos muitos anos, e algumas pessoas precisam tomar conhecimento disso e seguir em frente", desabafou ela.


Povo fala no Newcastle Advertiser do dia 3 de setembro de 2010:
pessoas escolhidas de acordo com a raça
Essas simples questões demonstram como ainda é frágil a convivência entre negros e brancos em um país que há 16 anos acabou formalmente com a segregação racial. A mídia sul africana, que durante os anos de apartheid proclamava apenas uma das versões - a branca, que justificava o regime dizendo que isso era feito para preservar a identidade dos descendentes de europeus em um país de maioria negra -, hoje é teoricamente livre. Nada de episódios como o do jornalista Donald Woods, que teve que sair escondido do país para publicar a verdadeira versão sobre o julgamento e morte do ativista negro Steve Biko. Ainda assim, a questão é delicada e são necessários alguns cuidados para se ter uma mídia "equilibrada".

Imparcialidade ou omissão?

Em qualquer universidade de jornalismo, uma das primeiras regras que se aprende é a importância da imparcialidade na apuração, mais conhecida popularmente como "ouvir os dois lados de uma história". Aqui, segundo Tanya, a regra é ainda mais importante. Além disso, é necessário que os jornalistas tenham muito cuidado ao expressar opiniões acerca das notícias envolvendo questões raciais.

Ela cita o exemplo do presidente da juventude do partido ANC, Julius Malema, que costuma expressar opiniões racistas e cantar hinos como "Shoot the Boers" ("Morte aos boers"). "Isso foi considerado como incitação ao ódio e Malema foi rapidamente colocado em seu lugar. O jornal tem o dever de reportar e a comunidade tem o direito de saber se ataques de ordem racial, como esse, estão acontecendo. Então nós fazemos notícias sobre isso, quando acontece, mas vamos sempre citar a fonte e não usar qualquer opinião pessoal. Nós não queremos que nenhuma raça se sinta prejudicada caso adotemos um dos lados".


Capas de várias publicações da mesma rede do Newcastle Advertiser

Muitas línguas, apenas uma notícia?

Outra questão delicada com a qual a mídia nacional tem que lidar é a diversidade de línguas. No caso do Newcastle Advertiser, a jornalista Estella Naicker me contou que eles suprem as diferentes necessidades de notícias mantendo uma rede diversificada de publicações. Essa rede inclui outros jornais menores em inglês, uma revista de soft news também em inglês, uma revista em afrikans dirigida aos boers (fazendeiros) da região e um jornal em zulu, que cobre prioritariamente as notícias de Madadeni e Osizweni - outra township localizada nos arredores de Newcastle. Além disso, o próprio Advertiser contém partes em inglês e outras em afrikans. Segundo Tanya, eles tentam manter a proporção de 70% do jornal em inglês e 30% em afrikans.

Para os jornalistas do Advertiser, lidar com as línguas é um problema também na hora da apuração. De acordo com Bruce, algumas vezes eles são chamados para cobrir algum acontecimento em Madadeni e se deparam com fontes que só sabem falar zulu. "Quando temos que fazer matérias nas townships, temos que achar alguém que fale inglês, porque muitas das pessoas de lá só falam zulu e eu entendo muito pouco da língua", explicou Bruce. Segundo ele, é por isso que nas townships a rede mantém uma cobertura voltada para uma publicação exclusiva na língua, com repórteres que têm o idioma como língua principal. Segundo Bruce, o que acontece também é que a maioria das pessoas entende e sabe falar um pouco de inglês, mas preferem conversar na sua língua principal.

Quando se trata do afrikans, Estella explica que eles não têm problemas em conversar com pessoas que só falam a língua: "Quando eu estava na escola, durante o apartheid, os alunos eram obrigados a aprender afrikans. Por isso, muitas pessoas consegue entender o idioma, mesmo que não saiba falar".

Para mim ainda é uma experiência divertida entrar nos supermercados e me deparar com publicações em várias línguas, a maioria em inglês e algumas em afrikans ou zulu, mas todas pertencentes a um mesmo país. Aparentemente, pelas publicações que ando colecionando - e tentando entender -, as diferenças mais visíveis (literalmente) entre o Newcastle Advertiser e a publicação em zulu da rede , o Ilanga, são a quantidade e o conteúdo das fotos. Em uma das edições do jornal zulu, havia uma foto grande de uma mulher vestida com trajes típicos africanos, com uma saia colorida, colares de miçanga e seios de fora, algo inaceitável para os leitores afrikans. E o que fica são perguntas: será que as notícias em tantas diferentes línguas contam a mesma versão de uma mesma história? Como as pessoas percebem as notícias sobre questões raciais? Mas isso é assunto para outro post, em breve.


Foto do jornal Ilanga, publicação em zulu, do dia 18 de agosto


Parte do Advertiser escrita em afrikans


3 comentários:

Breiller Pires disse...

Esse Ilanga é o Super daqui de BH.

E o "Advertiser", a julgar só pelo nome, deve ser algo parecido com o Estado de Minas.

Mas o revisor desses jornais é que deve adorar essa diversidade de idiomas...

Taís Ahouagi disse...

Ei Denise! Mais um ótimo post, hem. Você está construind leitores fiés!

Beijos

Denise disse...

Breiller, acho que mais parecido com o Super é o Newcastle Sun, uma das publicações em inglês que tem distribuição gratuita.
Já o Ilanga é em zulu e tem poucas fotos, então ainda não consegui entender se ele parece ou não com o Super!rs
E acho que a editora cuida só do Advertiser mesmo. As outras publicações devem ter outros editores.

Taís,
obrigada pelo elogio! Tomara que os leitores continuem fiéis!