A rede televisiva nacional SABC
Como já demonstrado pelo exemplo do Newcastle Advertiser, no âmbito local a questão dos idiomas é um problema para as publicações midiáticas na África do Sul. Quando se expande o problema para a mídia nacional, as coisas se complicam ainda mais. É por isso que a South Africa Broadcaster Corporation (SABC), a rede pública nacional de televisão e rádio do país, adotou uma estratégia de integração da diversidade cultural. Segundo o site da própria emissora, a SABC "é um organismo de radiodifusão pública estabelecida em 1936 com a fusão de três emissoras de rádio, formadas no início dos anos 1920. O principal negócio da SABC é oferecer uma variedade de programas e serviços de qualidade através da televisão e do rádio (...) para o público em geral." O público em geral, nesse caso, envolve o dilema das várias línguas e culturas nacionais.
Acima a primeira transmissão televisiva oficial na África do Sul
A emissora, que surgiu numa época de ebulição dos ódios inter raciais e que sobreviveu aos anos do apartheid, mudou muito sua programação. Os principais objetivos proclamados no site da SABC, atualmente, são um espelho da preocupação em não repetir erros do passado, quando o regime do apartheid promovia não só o racismo, mas apenas uma versão das histórias do país e limitava a participação política das pessoas. Tudo isso era largamente sustentado pela mídia. Assim, a emissora define como seus principais objetivos: "Promover a democracia, o não-racismo, a construção da nação, e a capacitação (...) em todas as línguas oficiais". Além disso, também quer assegurar que os conteúdos da SABC contem "a história Sul Africana e Africana com precisão, imparcialidade e de forma equilibrada para todos os sul-africanos".
Os idiomas na TV aberta
Para cumprir seu papel, a rede possui três canais abertos de TV, sendo cada um voltado para a programação em línguas específicas. O canal SABC 1 contempla o inglês, o isiZulu, o isiXhosa, o Sindebele e o Siswati; já o SABC2 tem transmissões nos idiomas inglês, Afrikans, Sesotho, Setswana, Sepedi, Xitsonga e Tshivenda. O SABC3, de programação mais comercial, transmite apenas em inglês, a língua oficial do mundo empresarial sul africano.
Grande parte da programação da SABC é em inglês e os programas em outras línguas contam com legendas. No caso dos jornais diários, entretanto, a emissora optou por fazer cinco versões, sendo duas em um canal e outras três em outro, cada uma contemplando uma ou mais línguas e nenhuma delas contendo legendas. Assim, diariamente o SABC1 transmite uma edição do jornal em SiSwati e Ndebele, e uma outra edição em isiZulu e em isiXhosa. O SABC2 transmite uma edição em TshiVenda e XiTsonga, outra em Afrikans e uma última em Sesotho, Sepedi e Setswana. Já o SABC3 transmite diversos boletins durante o dia, todos em inglês. A maioria das notícias contidas em cada versão dos jornais é praticamente igual, e as fontes entrevistadas para as matérias em comum falam inglês.
Imagem de uma das edições do jornal da SABC1 Foto tirada desse link |
Video de uma edição do jornal em afrikans no SABC2
Uma das edições do jornal em inglês no SABC3
Além da aparência física do apresentador - ou seja, a cor da pele, entre outras características -, a única outra parte que me pareceu bem diferente nos jornais em Afrikans numa comparação com os de outras línguas, foi a de esportes. No dia em que acompanhei toda a programação de jornais dos dois canais - SABC 1 e 2 -, por exemplo, todos os noticiários nas línguas "negras" continham notícias sobre os Bafana Bafana (a seleção nacional de futebol), que ia jogar no dia seguinte contra a seleção de Angola. Já no jornal em afrikans, nada foi dito sobre o jogo e as notícias mostravam os Springboks (seleção nacional de rugby) e os times locais, que estão disputando o campeonato nacional da ABSA Currie Cup, além de resultados de jogos de críquete. Provavelmente as notícias seguem os interesses dos telespectadores de cada idioma, o que, entretanto, não deixa de demonstrar as divisões de um país ainda fragmentado.
Além da aparência física do apresentador - ou seja, a cor da pele, entre outras características -, a única outra parte que me pareceu bem diferente nos jornais em Afrikans numa comparação com os de outras línguas, foi a de esportes. No dia em que acompanhei toda a programação de jornais dos dois canais - SABC 1 e 2 -, por exemplo, todos os noticiários nas línguas "negras" continham notícias sobre os Bafana Bafana (a seleção nacional de futebol), que ia jogar no dia seguinte contra a seleção de Angola. Já no jornal em afrikans, nada foi dito sobre o jogo e as notícias mostravam os Springboks (seleção nacional de rugby) e os times locais, que estão disputando o campeonato nacional da ABSA Currie Cup, além de resultados de jogos de críquete. Provavelmente as notícias seguem os interesses dos telespectadores de cada idioma, o que, entretanto, não deixa de demonstrar as divisões de um país ainda fragmentado.
Identidade nacional
Uma das principais políticas da SABC, que além da rede de televisões mantém 20 canais de rádio no país, é contribuir para o fortalecimento da identidade nacional no país. Ao ler uma dissertação de mestrado publicada por uma estudante da Faculdade de Humanidades da Universidade de Johannesburgo, tive oportunidade de saber como as pessoas da própria SABC enxergavam o papel da emissora na construção desta identidade. Para um país por muito tempo segregado, sendo que cada grupo racial tinha uma percepção de si mesmo - e não se entendiam como sul africanos, mas como afrikans, zulus ou xhosas- , a construção de uma identidade comum revela-se um desafio.
De acordo com a pesquisa realizada pela estudante todos os empregados da SABC entrevistados concordavam que era importante contribuir para a propagação da identidade nacional, embora a maioria não soubesse dizer o que seria essa identidade ou quais seus traços principais. Além disso, foi constatado que, para muitos, o uso de diversas línguas, bem como a política da rede de exibir uma certa porcentagem de programas locais produzidos no país, era uma faca de dois gumes. Segundo a autora da tese, Kurai Masenyama, muitos dos entrevistados para o trabalho diziam que mostrar as várias culturas locais contribuiria para que todos os sul africanos entendessem que aquela diversidade era constituinte de uma única cultura nacional, da qual todos faziam parte. Esses entrevistados enxergavam a exibição da variedade como uma oportunidade para as pessoas conhecerem e se sentirem integrantes de outros aspectos da vida no país.
Por outro lado, algumas pessoas diziam que mostrar as diferenças apenas contribuiria para reforçar que elas existem. Antes de se sentir parte daquelas culturas que lhes eram estranhas, as pessoas provavelmente as iriam rejeitar e fariam questão de se diferenciar delas, demarcando sua identidade grupal. Além disso, muitos acreditavam que a definição de uma única língua, o inglês, como idioma oficial contribuiria grandemente para a formação de uma identidade nacional.
A eterna dúvida entre unir através da língua ou respeitar e difundir a diversidade como a marca da identidade nacional parece ser uma preocupação que constantemente ronda a mídia. No caso da SABC, entretanto, outra questão parece ser ainda mais importante. Muitos dos grupos do país foram privados por muito tempo do acesso à tecnologia e à mídia e, até 2004, cerca de 85% do território sul africano ainda não tinha sinal de televisão¹. Desse jeito, como atingir todas as pessoas e conseguir falar em identidade nacional com tão baixo alcance? Esse número é mais uma das heranças da desigualdade promovida pelo apartheid, que ainda contribui para a existência de duas - ou tantas outras - Áfricas do Sul, com padrões de vida ainda muito diferentes.
¹ Dado retirado do livro DOMINGO, Vernon. Modern World Nations: South Africa. EUA: 2004, by Chelsea House Publishers, a subsidiary of Haights Cross Communications.
2 comentários:
Nossa, acho que esse foi um dos posts de que mais gostei. Imagino que loucura trocar de idioma da TV o tempo todo com a mesma facilidade que apertmos o botao do controle remoto.
Realmente, acho que uma das revelações é que a Árica do Sul não é dividida em duas paenas, mas em muitas!
Realmente a sensação de trocar de línguas apenas mudando os canais é engraçada, mas acho que ajuda a perceber até mesmo como a programação varia de acordo com a língua. Uma experiência interessantíssima!
E olha que eu apenas contei como são as línguas oficiais. Além delas, há uma variedade de línguas e "Áfricas do Sul" que vieram junto com os imigrantes indianos, um povo que também sofreu bastante durante o apartheid. Geralmente não ficamos sabendo desse pedaço da história e acreditamos que a divisão negro-branco foi a única por aqui.
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